O silêncio de uma vida inteira e tão cigana. Por Flávio Chaves

      Por Flávio Chaves – Jornalista, poeta, escritor e membro da Academia Pernambucana de Letras. Foi Delegado Federal/Minc   –  Hoje estive diante de uma cena indecifrável, daquelas que a vida nos reserva como um desafio à razão e um convite à emoção. Participei de uma celebração saudosa, um ritual de despedida e permanência, em que honramos a memória de um velho amigo que já partiu deste mundo. Em uma área de muito verde, colocamos o que restou de sua vida terrena: suas cinzas. A propriedade, cuidada com tanto zelo por ele em vida, mantinha-se bela e serena, como se guardasse em cada canto a essência de seu dono.

No centro do local, um altar simples e tocante: sua fotografia, emoldurada por uma toalha branca de linho, repousava sobre a mesa. Ao lado, um jarro de flores frescas, como um sopro de vida em meio à despedida. À frente do altar, cadeiras alinhadas esperavam familiares e amigos, todos ali para uma cerimônia religiosa campal, um momento de fé e memória. Sentada ao meu lado, sua filha segurava algo sacrossanto: as cinzas do pai. Aquele pequeno recipiente guardava não apenas os restos mortais, mas histórias, risos, conselhos e olhares que jamais se apagariam da memória de quem o amou.

A música entrou em cena como um personagem silencioso, mas profundamente presente. A Ave Maria, de Schubert, ecoou suave e solene, envolvendo a todos em uma atmosfera de reverência e dor. Enquanto a melodia se espalhava pelo ar, parecia que o tempo parava, ou talvez se transformasse em algo mais denso, mais pesado. Os corações se apertavam, as mãos se moviam quase involuntariamente, como se buscassem tocar o amigo ausente, sentir seu gesto, seu abraço, sua presença. Os olhos, marejados, estendiam-se como cortinas ao vento, num vai e vem de lembranças e saudades.

Chegou o instante que todos sabiam que viria, mas que ninguém verdadeiramente aguardava. Era hora de se dirigir a uma pequena cavidade no solo, onde uma árvore jovem esperava para ser plantada. Ali, naquela propriedade que ele tanto amou, seria sua morada eterna. Um a um, familiares, amigos e funcionários se aproximaram, cada um depositando um punhado de cinzas ao redor da muda. Era um gesto simbólico, mas também profundamente real: ele estaria ali, naquela terra, naquela árvore que cresceria e se tornaria parte da paisagem que ele tanto cuidou.

Foi um momento solene, mas também doloroso e triste. Quem ali tinha olhos e coração não pôde evitar as lágrimas. E então, como se a natureza quisesse participar do ritual, uma chuva fina começou a cair. Leve, quase imperceptível, ela trouxe consigo uma frase que ecoou em minha mente, de Charles Chaplin: “Nada é para sempre, nem mesmo os nossos problemas… Eu gosto de andar na chuva, assim ninguém vê minhas lágrimas.” Aquela chuva parecia lavar a dor, mas também renovar a esperança, como um ciclo que se fecha e se abre ao mesmo tempo.

Já próximo do anoitecer, voltamos quase em silêncio. O caminho de volta foi marcado por uma pergunta que ecoava dentro de cada um de nós, mesmo que não fosse pronunciada: Qual o sentido dessa vida tão cigana? Uma vida que nos leva de um lugar a outro, que nos faz rir e chorar, que nos une e nos separa, que nos dá raízes e, ao mesmo tempo, nos faz voar.

Talvez o sentido esteja justamente nessa impermanência, nesse movimento constante. Na capacidade de deixar marcas, como a árvore que crescerá das cinzas. Na possibilidade de transformar a dor em memória, e a memória em algo que permanece, mesmo quando tudo parece passageiro. A vida cigana, afinal, não é sobre onde estamos, mas sobre o que carregamos conosco — e o que deixamos para trás.

E assim, sob a chuva fina e o silêncio de uma vida inteira, seguimos em frente, com o coração apertado, mas também com a certeza de que, em algum lugar, ele estaria sorrindo, cuidando de sua propriedade, agora e para sempre.