Por Josemir Camilo – Do Jornal O PODER –
Em 18 de setembro de 1824, Frei Caneca e quatro paisanos liberais, fugindo dos bombardeios imperiais ao Recife, chegaram a Goiana. Assim ele relatou em seu Itinerário.
“Chegamos a esta vila à meia-noite, e não foi pequeno o nosso espanto, quando sem esperarmos a achamos deserta inteiramente. O escuro da noite e o medonho silêncio em que estava sepultada a vila, os uivos dos cães, tudo cooperou para nos encher de terror, e nos julgarmos nos maiores perigos. Corremos várias ruas em busca das pessoas do nosso conhecimento, mas tudo foi baldado; porque a ninguém achamos.
Nesta circunstância deparamos com duas casas, em que por estarem com luz acesa nos falaram; mas foi para maior embaraço nosso. Em uma, um soldado cheio de maior terror por ver-nos, e talvez supor-nos inimigos, balbuciava, e nada dizia que fosse coerente; e ainda assim nos informou que toda a tropa já se havia retirado pela estrada da Conceição. Mas outro, que em outra rua nos falou traiu-nos dizendo-nos que a tropa tomara a estrada de Goiana Grande: era o mesmo que entregar-nos aos ceroulas (termo que designava tropa mal vestida) de João Baptista Rego, que já haviam tomado o ponto de Pitimbu, e era natural estarem naquelas fronteiras.
Os nossos companheiros, que ignoravam a topografia da vila (de Goiana) e não sabiam e nem podiam conhecer o laço que nos armava o segundo informante, desconfiados do modo trepidante do primeiro, fiaram-se na segurança com que falou o segundo; e assim assentaram que tomássemos o caminho de Goiana Grande. Ponderamos-lhes o que sabíamos, dirigindo-nos a mostrar-lhes que jamais podia a força de Goiana seguir aquele destino; mas foi em vão: teimaram os nossos amigos no seu entendimento, e nós por contemporizar seguimo-los; e, ao passar pela frente do Convento do Carmo, nos dirigimos a ele, para que lá tomássemos informação do estado das coisas; mas tudo foi sem fruto.
O convento estava aberto e às escuras, ainda assim pelo tino, que nos fazia lembrar dos seus arranjos, por termos por anos habitado aquela casa, nos arriscamos a entrar e subir até o seu antecoro; e por mais que gritamos a chamar quem lá estivesse, ninguém nos respondeu”.

Fuga na lama
Depois de terem seguido para Goiana Grande, Caneca tomou a decisão, naquela escuridão, cercado por canaviais e muita lama, de retornarem e seguirem o frade indicava, o caminho para Goianinha, em busca das tropas pernambucanas e paraibanas, em direção a Limoeiro e ao Ceará.
Frei Caneca só voltaria a passar por terras goianenses, meus prezados e prezadas, pelo engenho Bujari, em 15 de dezembro de 1824, onde foi visitado pela nata liberal goianense da época, tendo sido, dias atrás, em Pombal-PB, visitado pelo vigário de Goiana, que por lá andava, Padre João Vicente Lopes Bandeira. Agora, em Bujari, preso, seguia para ser submetido a uma corte marcial, no Recife, ainda naquele mesmo mês.
Maior entre os maiores
Gostaria de em rápidas pinceladas apresentar este brasileiro, para nós, o maior entre os maiores e que viveu alguns anos neste modesto convento. Resumo, aqui, sua vida em cinco tópicos, a saber: o poeta e escritor; o político; o teórico; o jornalista; e o “guerrilheiro” e sua defesa.
O intelectual Caneca, poeta e escritor – o frade exerceu publicamente o espírito laico, não só através de seus escritos políticos abraçando o Iluminismo e congregando-se discretamente com a maçonaria, a que defendeu em artigo. Como poeta esboçou uns versos arcádicos, como na Ode a D. João V, que de tão empolados escondem, provavelmente, alguma ironia, pois parecia demonstrar uma adesão à monarquia constitucional parlamentar e não diretamente ao rei. Era, então, perigoso ser acusado de republicano. Mas foi com seu Sermão de Aclamação ao Imperador que se tornou famoso, em que parecia deixar de ser o rebelde. Ledo engano.
Deixou também alguns poemas políticos em forma de trovas como: “Entre Marília e a pátria/ Coloquei meu coração:/ A pátria roubou-m’o todo;/ Marília que chore em vão”.
Cultura exuberante
Além disso, há informações de que, em 1817, escrevia uma História de Pernambuco até o governo de Caetano de Pinto Montenegro. Bastante versado nos clássicos latinos, dominava o francês e o inglês, traduzindo uma gramática inglesa. Escrevia um Compêndio de Cronologia. Ficou bem conhecido seu sermão impresso que pregou na Ordem Terceira do Carmo, no Recife, reproduzido por Frei Tito. Frei Caneca traduziu uma História da Franco-Maçonaria, extraída da Enciclopédia Inglesa e fez uma tradução do francês “O Espelho das Mulheres, ou a arte de realizar por meios das graças os encantos da formosura”.
O político. Trago em mente sua expressão máxima: “Nada, do Rio de Janeiro não queremos Nada!”. Frase de protesto, subvertendo a frase que o príncipe português havia dito contra a Corte de Lisboa, enquanto Caneca a jogava contra a do Rio de Janeiro.

Polemista desaforado
Em polêmicas jornalísticas, o frade descia ao nível da rua, em seus escritos contra os áulicos de D. Pedro. Mas foi em seu embate pela constituição soberana e popular que deixou duras críticas ao imperador. Denunciou o golpe do fechamento da Constituinte em novembro de 1823, com o nome de 18 Brumário, se antecipando até mesmo a Karl Marx, sobre o modelo de golpe aplicado pelos dois Napoleão. Além disto foi acusado de ser mentor intelectual do presidente Manoel de Carvalho, um dos “secretários” daquele governo, e secretário da Coluna Confederada pelos sertões, sem, no entanto, pegar em armas.
O teórico
Por seu viés político ao combater seus adversários terminava por teorizar naquilo que viria a ser as ciências políticas, como fez com a sua Dissertação sobre pátria e os deveres do patriota; como analisou o golpe acima dito, o papel dos militares, à sua época, quando cunhou a magnifica frase “Infeliz a pátria em que o soldado é filósofo!”. Frei Tito o definiu como intelectual orgânico.
O jornalista e polemista. O caráter polêmico de jornalista já foi temperado dentro do próprio convento, em 1805, solicitou a D. João licença para ir cursar Letras em Coimbra para o estudo de Humanidades. Antes do final daquele ano, denunciou que seu provincial arbitrariamente o proibiu de viajar a Portugal, e fez crítica à própria ordem e sua riqueza, em vez de fazer caridade.
O Typhis
Culto e versátil, grande orador, resolveu pôr suas ideias e sua defesa no papel, fundando seu jornal, o Typhis Pernambucano, tornando-se um dos maiores jornalistas da época, sendo lido até na corte. Além de grandes polêmicas políticas, esnobava conhecimentos filosóficos e literários. Mas também era o repórter, o colunista, que narrou a batalha do Riacho das Pedras, na Paraíba, em maio de 1824, a primeira e maior guerra entre os dois grupos, o imperial e o liberal
Deixou escrito seu Itinerário, onde se comportou como correspondente de guerra narrando a sociedade, a geografia e descrevendo, apesar do perigo, cenas bucólicas, como a descoberta de uma carnaubeira em seu habitat, ou a descida da Serra da Borborema.

O guerrilheiro
Na acusação do tribunal militar constava que era guerrilheiro, pois assim andava vestido desde setembro até quando foi preso. Defende-se que perdera o hábito que deixara na garupa da montaria e ficara de calças e jaqueta de chita. Alerto que é mito que Caneca tenha comandado tropas, embora usasse de estratégias ao analisar como deveriam os confederados negociar com a tropa imperial, na marcha para o sertão, garantindo que vilas e povoações não fossem saqueadas, o que ganhou até inimizades dentro da tropa liberal. Ao ser acusado de que resistira a Lima e Silva, fugindo, em sua defesa, alegou que fuga não é resistência, que fugira pelo medo de ser preso e fugiu só, quando soube da traição do comandante confederado José de Barros Falcão de Lacerda, a quem chama de traidor. O frade, acusado de ser “guerrilheiro”, se defende alegando que fuga não é resistência, que “quem corre e foge não resiste, pois a resistência é o contraditório da fuga; menos ir na companhia de tais tropas, porque estas fugiam também do bombardeio” indiscriminado no Recife, pelo mercenário inglês Cochrane e as tropas de Lima e Silva, “e sempre debaixo do pavilhão do império, que nem cá deixaram”.
Rendição
Em 29 de novembro de 1824, o comandante paraibano Félix Antônio Ferreira de Albuquerque, de tão largo exército não só de homens balas, mas de famílias ávidas e neófitos cidadãos liberais, fugindo da máquina da morte, tendo ao seu lado, como companheiro, o bravo e discreto guerrilheiro das letras e de poemas, e secretário daquela campanha suicida, Frei Joaquim do Armor Divino Rabelo Caneca, vestido de jaqueta guerrilheira, calças comuns, camisa e jaleco de couro, o aparente civil, mantendo-se à seca, à fome de munição de boca e água, e de esperança, se entregaram ambos às tropas imperiais.
Presos, cercados por homens armados, metralhas a postos, Caneca e uma dezena de presos políticos marcharam de volta para o Recife, para responder aos carrascos que já estavam de plantão, desde a portaria imperial de 26 de julho de 1824. Ingênuo, o frade mentalizava sua defesa, como bem fizera em 1817, indo apenas para a prisão política. Em vão. O dia 13 de janeiro de 1825, senhoras e senhores, nos deixou órfão!
Salve, este grande morador outrora de Goiana, Frei Caneca, mártir e herói!
*Discurso do historiador Josemir Camilo no ato de inauguração do
busto de Frei Caneca em Goiana, a quinta-feira, 13/02/2[25.
