Reabertura de Notre Dame, uma cortina de fumaça para a crise política do governo Macron. Por Flávio Chaves

A França numa  politização em defesa de seu tempo de crise 

  Por Flávio Chaves

A solenidade deste dia, marcada pela tão aguardada reabertura da Catedral de Notre Dame em pleno coração de Paris, surge num contexto histórico denso, repleto de significados tanto para o patrimônio cultural mundial quanto para a cena política interna da França. A icônica catedral, que resistiu a séculos de transformações e suportou o trágico incêndio de 2019, sempre se impôs como símbolo maior do patrimônio histórico, da fé e da identidade francesa. Ela não apenas testemunhou revoluções, guerras e a consolidação do Estado republicano, mas também encarnou o espírito cultural europeu, atraindo milhões de visitantes anualmente. Reabri-la significa, sem dúvida, devolver ao mundo um ponto de referência histórica e turística de valor

Entretanto, o que deveria ser um momento de celebração e comunhão em torno daquilo que Notre Dame representa – a perseverança do patrimônio, a força da memória coletiva, a recuperação de um símbolo da humanidade – torna-se alvo de uma leitura política prematura. O governo Macron, pressionado por uma crise política que se aprofunda a cada semana, e que culminou recentemente na queda do primeiro-ministro, encontra-se em um dos períodos mais delicados e tensos de sua gestão. A França atravessa, neste instante, intensos debates públicos sobre reformas, protestos constantes e uma polarização crescente do discurso político. A estabilidade do governo mostra-se frágil, e a opinião pública, inquieta, seu olhar par

Neste contexto, a reabertura da Catedral de Notre Dame, embora simbolicamente potente e historicamente relevante, não pode ser comprovada apenas pelo prisma da restauração do monumento em si. Há uma atmosfera de suspeita no ar, indicando que o evento pode estar sendo instrumentalizado como cortina de fumaça, um gesto coordenado para distrair a atenção da opinião pública e da imprensa internacional do furacão político que varre o governo francês. Ao centrar o foco midiático no renascimento de um ícone mundial, o Palácio do Eliseu parece buscar aplacar, ao menos momentaneamente, o descontentamento popular, oferecendo à população e aos turistas uma narrativa de retomada, de superação e de orgulho nacional.

A dimensão turística da reabertura também não é acessória: Notre Dame, desde muito antes do trágico incêndio, figurava como um dos pilares do fluxo turístico internacional para Paris, ao lado da Torre Eiffel, do Louvre e do Arco do Triunfo. A catedral, com sua arquitetura gótica e seu papel primordial na literatura universal – basta lembrar o “Corcunda de Notre Dame”, de Victor Hugo – sempre foi um ponto de convergência de culturas, tendências e curiosidades. Ao ser reaberta em um período de tensão política, Paris procura reafirmar-se como destino global, um ponto de encontro do mundo no coração da Europa. A injeção de visitantes estrangeiros, a dinamização do comércio local e o fortalecimento da imagem francesa no exterior são fatores que, sem dúvida, atraem o olhar do governo, especialmente num momento de crise

Por outro lado, essa dinâmica carrega suas contradições e riscos. Ao tentar capitalizar politicamente um acontecimento que por si só já é carregado de história e simbolismo, o governo pode inflar ainda mais o descontentamento daqueles que enxergam na reabertura da catedral apenas um oportuno subterfúgio. A mobilização do patrimônio cultural em função de agendas políticas imediatistas tende a gerar ressentimento e questionamentos sobre a sinceridade dos interesses governamentais. Além disso, há o perigo de uma crise não ser efetivamente contornada: o fogo político que consome a alternativa do governo não se apaga simplesmente com o brilho ancestral dos vitrais góticos de Notre Dame.

A grande reflexão que emerge é justamente essa tensão entre o valor incontestável da reabertura da catedral – um feito extraordinário do ponto de vista da preservação histórica, da engenharia e do simbolismo civilizatório – e o uso estratégico desse momento para desviar o debate público dos impasses políticos, da falta de consenso e da recente queda do primeiro-ministro. A França, ao longo de sua trajetória, nunca foi estranha ao teatro político entremeado por gestos públicos de grande impacto simbólico. Contudo, é inegável que o contexto atual, marcado pela fragmentação e pela incerteza, exija atenção

Em suma, a reabertura da Catedral de Notre Dame, um patrimônio de valor histórico e cultural incalculável, revitaliza a paisagem parisiense e resgata um dos mais fortes símbolos do passado e do presente francês. Internacionalmente, marca a retomada de um dos polos turísticos mais visitados do mundo. Ainda assim, não se pode ignorar que a França, imersa em uma crise política contundente e vendo seu primeiro-ministro sucumbir às pressões, pode estar a utilizar o brilho do monumento restaurado como uma forma de contemporizar a tensão política, aliviando o debate público e direcionando o olhar do mundo para as pedras seculares da catedral, e não para as rachaduras do atual governo. O desafio, para analistas, historiadores, turistas e cidadãos franceses, será ponderado a dimensão genuína do retorno deste símbolo sem perder de vista o cenário político que o envolve, garantindo que a grandiosidade deste monumento não seja apenas um pano de fundo para manobras políticas oportunistas, mas sim o ponto de partida para um diálogo mais lúcido e honesto sobre a complexa relação entre patrimônio cultural, identidade nacional e poder político.