Universidade faz estudos de reencarnação, mediunidade e episódios de quase morte

Otto relata episódios da vida do avô que não conheceu

Anna Virginia Balloussier
Folha

Já aos dois anos, Otto tinha comportamentos “que não eram da sua idade”, conta sua mãe, a acupunturista Erika Pissarra, 34. “Como andar com as mãos para trás e dizer que gostaria muito de tomar cervejinha”, exemplifica. A sogra comentava que esses hábitos pareciam com os de seu pai, o bisavô do menino, morto muitos anos atrás.

Poderia ser apenas uma idiossincrasia, mas outros eventos pasmaram a família. Aos três anos, observando o céu, Otto perguntou se a avó se lembrava de quando o homem foi à Lua pela primeira vez. Aí falou com muita naturalidade: você era bebezinha na época. Ela nasceu em 1969, ano em que a Apollo 11 aterrissou na superfície lunar.

NUM TECO-TECO – Outro capítulo convenceu sua família de que o garoto era a reencarnação de Walter, o antepassado. Mais uma vez ao lado da avó, Otto viu um avião e quis saber se ela recordava da vez em que ele havia pilotado um teco-teco com os dois a bordo. “Só aí minha sogra nos contou que, quando pequena, seu pai tinha levado ela para andar naqueles aviões pequenos.”

Relatos como o de Erika muito interessam ao Nupes (Núcleo de Pesquisa em Espiritualidade e Saúde), da Universidade Federal de Juiz de Fora. O grupo acadêmico investiga a possibilidade da mente humana sobreviver ao perecimento do corpo físico — abordagem científica para uma das questões mais centrais para as sociedades desde seus primórdios, se existe vida após a morte.

Fundador do Nupes, o psiquiatra Alexander Moreira-Almeida lança agora, junto com a também psiquiatra Marianna Costa e o filósofo Humberto Schubert Coelho, um livro que compila décadas de pesquisas sobre o tema. “Ciência da Vida Após a Morte” saiu globalmente pela Springer Nature, importante editora de periódicos científicos.

PERSPECTIVA CÉTICA – O trio se propõe a analisar “com perspectiva cética saudável” evidências que apontem para a continuidade da consciência humana depois da morte corporal. Um conceito, para os autores, rechaçado no meio por puro preconceito.

A religiosidade motiva a alergia à ideia. Ela contamina o debate, já que as principais crenças do mundo, cada uma à sua maneira, acreditam na premissa. E não pegaria bem para ilustres cientistas se mancomunarem com preceitos da ordem da fé.

Seria uma aposta desmesurada no fisicalismo, a teoria de que tudo se circunscreve ao mundo físico. Ou seja, nossos pensamentos e desejos —o que definimos como mente, e certas religiões chamam de alma— nada mais são do que atividades cerebrais.

CIENTISTAS ADEREM – Não são poucos os cientistas que aderem a essa premissa. O físico Sean Carroll escreveu na Scientific American, outra publicação de peso na área, “A Física e a Imortalidade da Alma”.

Argumenta no artigo que afirmações sobre a persistência de alguma forma de consciência depois que nossos corpos se decompõem são incompatíveis com as leis da física. “De que partículas essa suposta alma é feita? Que forças as mantêm unida?”

A obra brasileira questiona por que tanta pressa em descartar toda e qualquer suposição sobre a morte não ser o fim de tudo. Claro que um monte delas não passa de fraude, e outras são perfeitamente explicáveis por fenômenos psicossociais, como a predisposição de pais enlutados a endossar a leitura genérica de um dito médium sobre o filho perdido.

O QUE É ESTUDADO – São três campos principais de estudo: mediunidade, reencarnação e as EQM (Experiências de Quase Morte). O caso do menino Otto, hoje com 6 anos, encaixa-se no grupo de pessoas que afirmam ter memórias de vidas passadas. A maioria são crianças pequenas, que na medida em que crescem deixam para trás recordações, maneirismos e até línguas estrangeiras que conseguiam falar, mesmo sem nunca terem tido qualquer contato prévio com elas.

Um pioneiro levantamento nacional, sob guarida do Nupes, recolheu 402 depoimentos de adultos e 30 de crianças e adolescentes que dizem ter tido experiências correlatas.

Um caso narrado vem da Tailândia: o menino que, espontaneamente, dizia ter sido um professor que morreu com um tiro enquanto ia de bicicleta para a escola. Investigação mostrou que o garoto conseguiu nomear corretamente o nome do docente, assim como os de seus pais, esposa e filhos. Gente que morava numa aldeia distante dele, sem qualquer conexão com sua vida.

EXCLUIR HIPÓTESES – A metodologia começa por excluir hipóteses possíveis: acaso, falcatrua ou mesmo percepções extrassensoriais que atestariam um poder descomunal da mente, mas não necessariamente seriam a prova cabal de vida póstuma. Vai que ele tinha o dom da clarividência ou da telepatia e conseguia acessar histórias íntimas dos outros?

Embora elucidem parte dos casos, em muitos outros “explicações convencionais certamente não dão conta do conjunto das evidências”, diz Moreira-Almeida.

Supomos que a criança tailandesa telepaticamente absorveu conhecimento sobre o professor assassinado. Mas ela também possuía, descobriu-se depois, duas marcas de nascença compatíveis com a entrada e a saída da bala no corpo do morto. Exemplos afins se repetem.

QUASE MORTE – Experiências de quase morte, as EQM, são um capítulo à parte. Podem partir de indivíduos em estágio terminal ou que foram declarados clinicamente mortos e ressuscitaram. As descrições costumam se parecer: sensação de se observar de um ângulo externo (como ver médicos tentando reanimar o coração), visões de túnel ou luz brilhante, encontro com parentes mortos e sentimentos de paz.

São casos que ganharam menção na Lancet, prestigiada revista científica. Como o da mulher que, para uma neurocirurgia, teve o corpo resfriado a 16°C, ouvido tapado com fone, fita nos olhos e uma linha plana no exame que detecta atividade cerebral.

Feita a operação, ela reproduziu em detalhes o que passou no dia, da broca usada para furar seu crânio à voz feminina dizendo que suas veias eram pequenas.

COMUNICAÇÃO – A mediunidade, terceiro tronco do estudo, seria o dom de se comunicar com os mortos. Para os autores, “se seriamente considerada, essa tese sobre ‘a aparição dos mortos’ faria da ressurreição de Cristo a maior história de fantasma de todos os tempos”.

De novo, o que vale são exemplos à prova de rigoroso escrutínio da ciência. Leonora Piper (1857-1950) se enquadra aqui. Para checar se a médium americana era pra valer, William James, o chamado pai da psicologia americana, acompanhou-a por anos a fio.

Um dos experimentos contou com 25 pesquisadores que, usando pseudônimos, consultaram-se com Piper. Ela forneceu informações corretas de assuntos privados de cada um, sem nunca tê-los visto antes.

CORVO BRANCO – James escreveu, convencido da veracidade daquele transe mediúnico: “Se você deseja desafiar a lei de que todos os corvos são pretos, você não deve tentar mostrar que nenhum corvo o é; basta provar que um único corvo é branco. Meu próprio corvo branco é a sra. Piper”.

Nunca houve comprovação consistente de fraude contra ela. O mesmo vale para Chico Xavier (1910-2002). Já em sua primeira obra psicografada, “Parnaso de Além-Túmulo”, o mineiro, que estudou só até o ensino fundamental, produziu poemas atribuídos a gigantes como Augusto dos Anjos, morto anos antes.

Monteiro Lobato chegou a dizer que, se Xavier fosse um embuste como médium, como escritor poderia estar em qualquer Academia de Letras. Os versos eram coisa de outro mundo.