A revolução silenciosa no Brasil

     Sérgio C. Buarque

 

A pobreza e as desigualdades sociais no Brasil vêm caindo continuamente há duas décadas. E o desemprego desceu a níveis baixos, nos últimos dez anos, mesmo com uma economia crescendo em ritmo medíocre. De 1991 a 2010, o PIB do Brasil cresceu em torno de 3,2% ao ano, quase sempre abaixo da média mundial e de todos os países emergentes e, no entanto, o desemprego flutua em torno de 6% da PEA-População Economicamente Ativa. No mesmo período, a taxa de pobreza declinou de 38,2%, em 1991, para 15,2%, em 2010, e o índice de Gini, que mede a desigualdade de renda, caiu de 0,61, em 1990, para 0,54, em 2011.  Esta importante melhoria dos indicadores sociais costuma ser atribuída, indevidamente, ao sucesso das políticas sociais dos governos, particularmente ao programa Bolsa Família implementado pelos governos do PT-Partido dos Trabalhadores.

O principal determinante da redução da pobreza e das desigualdades sociais do Brasil nas últimas décadas não foram as políticas sociais – transferência de renda – como tem sido difundido amplamente, e sim um fenômeno estrutural que independe dos governos e tem sido ignorado nas análises: a profunda transformação nos padrões demográficos do Brasil, que começou bem antes e que se manifesta agora no mercado de trabalho e no tamanho das famílias. Esta revolução – subterrânea, silenciosa e pouco visível – se manifesta na drástica redução da fertilidade e do tamanho das famílias e sua relação com o mercado de trabalho e a renda.

Estudo de Marcelo Neri, atual ministro-chefe da Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República (SAE), para o período de 1992 a 2007 mostra que a contribuição da Bolsa Família para o crescimento da renda domiciliar per capita no Brasil foi muito pequena, apenas 0,93%. De acordo com Neri, o principal determinante da elevação da renda foi o aumento do salário real dos trabalhadores, responsável por 71,16% do resultado. O aumento do salário mínimo ao longo dos anos ajudou mas não foi o principal fator, basta considerar que, ainda segundo Neri, a parte da Previdência social vinculada ao salário mínimo contribuiu com apenas 6,73% para a elevação da renda, muito mais que o Bolsa Família mas muito menos que os salários definidos pelo mercado de trabalho. O aumento do salário real resulta do mercado de trabalho e, em última instância, da relação entre a oferta de mão de obra, e a demanda por trabalhadores. O mercado de trabalho, e não o Estado e suas políticas, desequilibrou as relações em favor dos trabalhadores, com moderação do desemprego e aumento da participação dos salários na renda nacional.

Desde 1991, a PIA-População em Idade Ativa no Brasil (acima de 15 e a abaixo de 65 anos) vem crescendo a taxas fortemente declinantes: de 2,6% ao ano (de 1991 a 2000), caiu para 1,9% nos cinco anos seguintes (2000/2005) e para apenas 1,2%, de 2005 a 2010. Mesmo considerando que parte desta população apta para o trabalho não busca emprego, é deste segmento etário que emerge a oferta de mão de obra no país. Tamanha redução no ritmo de expansão da PIA explica o aparente mistério de queda do desemprego em um período de modesto crescimento da economia (3,2% ao ano na média dos últimos dezenove anos). A oferta de mão de obra cresce bem menos que a demanda, de modo que, para utilizar um conceito de Karl Marx, o “exército industrial de reserva” vem declinando de forma acelerada no Brasil, retirando a pressão para baixo que tende a exercer na formação dos salários.

Ao longo do período (1991/2010), enquanto a população apta para o trabalho crescia cada vez menos, a economia melhorava aos poucos o seu desempenho. No último quinquênio (2005/2010), quando a população ativa cresceu apenas 1,2% ao ano, o PIB-Produto Interno Bruto registrou uma expansão de 4,5% ao ano. Nenhum “espetáculo de crescimento”, é verdade, mas suficiente para gerar um aumento da demanda de mão de obra bem superior ao baixíssimo crescimento da oferta de mão de obra. E como, no outro lado da equação, a produtividade do trabalho praticamente estacionou no Brasil, o desemprego caiu e os salários reais cresceram pelo jogo do mercado de trabalho. De 1990 a 2012, a produtividade do trabalho no Brasil cresceu modestos 0,8% ao ano (de acordo com Jorge Arbache), influenciando muito pouco na demanda. Um crescimento maior da produtividade brasileira, desejável e necessário para poder competir no mercado global, tende a moderar a demanda por mão de obra mas, ao mesmo tempo, favorece a expansão do PIB e, portanto, da demanda por mão de obra.

A mudança da estrutura etária da população do Brasil, com a diminuição da fecundidade (número muito menor de filhos) representa também uma redução do tamanho médio das famílias brasileiras. Em 1991, as famílias brasileiras tinham, em média, 2,9 filhos (tinha sido 5,3, em 1970), declinando para 2,4 filhos em 2000, e apenas 1,9 filhos, em 2010, o que corresponde a famílias com média de apenas 3,3 membros. Nestas últimas décadas, segundo o demógrafo mineiro José Alberto Magno de Carvalho (matéria da Piauí nº 80), a redução da fecundidade e do tamanho das famílias foi mais acentuada na população pobre, mesmo porque este movimento já tinha ocorrido antes entre os mais ricos. De modo que a renda domiciliar per capita entre os pobres cresceu mais que na média da população, na medida em que o denominador da relação – tamanho da família – despencou ao mesmo tempo em que o salário real também cresceu.

Como resultado destes dois movimentos – aumento do salário real e redução do tamanho das famílias – a renda domiciliar per capita cresceu bastante – maior renda para menos pessoas na família – levando ao declínio da pobreza e das desigualdades de renda. O silencioso processo de mudança demográfica levou à melhoria dos indicadores sociais independente das políticas sociais. O problema é que este movimento não é visível nem é propagado pela máquina de construir mitos do governo que insiste em dizer que o milagre está no programa Bolsa Família e nas transferências de renda. Em outras palavras, a propaganda oficial vem dando às políticas de distribuição de renda um mérito que pertence, de fato, às mudanças nos padrões demográficos brasileiros. E como o fenômeno demográfico é lento e silencioso, não é perceptível pela a opinião pública que parece convencida do sucesso da assistência social dos governos.

 

Sérgio Buarque é Economista e consultor.

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