O pernambucano Paulo Bruscky mostra boa parte de seu acervo no Rio

Aos 65 anos, artista que se correspondeu com grandes nomes da arte, de Keith Haring a John Cage, traz à cidade parte de sua coleção

O artista na Biblioteca Parque Estadual, onde mostra 500 itens de seu acervo até 21 de setembro – Leo Martins

 Pela caixa postal número 850 da central dos Correios de Recife, passaram correspondências de Yoko Ono, Keith Haring, John Cage, León Ferrari, Lygia Clark, Hélio Oiticica. Foram cartas, postais, obras de arte (colagens, desenhos, xerox de trabalhos), carimbos, fotos, poemas. À agência Paulo Bruscky se dirigia todos os dias, levando sempre uma sacola cheia — para despachar — e outra vazia — para carregar com o que recebia.

O número de sua caixa postal circulou por grupos de artistas de todo o mundo desde os anos 1970, quando a chamada arte correio surgiu. Por meio dela, Bruscky, hoje com 65 anos, tomou contato com a produção internacional e criou um acervo precioso que, com livros de arte garimpados pelo mundo, enche duas casas em Recife. Das principais vanguardas artísticas, ele tem cerca de 70 mil itens. Sua biblioteca sobre o grupo Fluxus é tida como a maior da América Latina.

Um recorte de seu acervo (de 500 peças) viajou ao Rio no final de junho e, agora, ocupa a Biblioteca Parque Estadual, como um braço da exposição “artevida”. Trata-se da mostra “artevida (arquivo)”, espécie de individual do acervo de Bruscky na cidade. Estão nela obras de 1950 até meados dos anos 1980 que chegaram ou saíram pela caixa postal 850 e que, só mais recentemente, vêm ganhando atenção de instituições e do mercado internacional.

— A arte correio é difícil de ser entendida — afirma Bruscky — Nunca vivi da arte. Minha obra começou a ser vendida há cinco anos (quando passou a ser representado por uma galeria). A única instituição que comprou obra minha no Brasil foi o Itaú Cultural (outros museus brasileiros têm obras suas, mas recebidas por doação). Lá fora, MoMA, Guggenheim (ambos em Nova York) e Tate (em Londres) compraram. Mas o interesse aqui e lá agora é maior.

Tanto que, só neste ano, o recifense abrirá quatro grandes individuais. Em setembro, sua retrospectiva que deixou o Bronx Museum, em Nova York, em abril, chega ao Phoenix Art Museum. “Paulo Bruscky: Art is our last hope” (Paulo Bruscky: arte é nossa última esperança, em tradução livre) é a primeira panorâmica do artista nos Estados Unidos.

No Brasil, em setembro, ocupará o Museu de Arte Moderna (MAM) de São Paulo um dia antes da abertura da Bienal, com obras antigas e uma performance inédita: terá eletrodos ligados ao cérebro e, usando um eletroencefalograma, poderá “pintar com o pensamento”, como diz. No mesmo mês, fará mostra na galeria Nara Roesler, em São Paulo. Em outubro, fará no Instituto Tomie Ohtake uma “sinfonia” de batimentos cardíacos. Estetoscópios serão distribuídos em museus como o MoMA e a Tate, para captar batimentos de visitantes e enviá-los, em tempo real, a um computador em São Paulo que combinará os sons de forma aleatória e fará o áudio ressoar pelo instituto.

Criador e pesquisador

Pelas experimentações com diversas tecnologias — do fax, nos anos 1970, à internet —, Bruscky se consolidou como um artista multimídia. Mas é sua arte correio, aliada ao trabalho de “arquivista” (“Vou a sebos em todas as cidades que visito”, diz), que atrai olhares de curadores e pesquisadores. O Itaú Cultural, conta o pernambucano, patrocinará a catalogação e a digitalização de seu acervo em Recife, hoje em caixas organizadas por países ou nomes de artistas.

A curadora Cristiana Tejo, que há 15 anos pesquisa a obra de Bruscky, diz que ele “interligou, desde o princípio, o fazer artístico e o ato de arquivar, guardar os vestígios dessa atuação, porque os museus não estavam fazendo isso”.

— Com a arte correio, os artistas queriam criar uma forma de circulação e de fazer arte que fosse independente. É muito diferente dos dias de hoje, em que um artista, quando começa, já está pensando na galeria (que vai comercializar seu trabalho) — explica Cristiana. — Até hoje, o mundo da arte se baseia no objeto único, no fetiche pelo objeto. A geração de Bruscky e de muitos outros artistas quer algo que seja livre de amarras, trabalhando com qualquer objeto e qualquer material. É como Robert Rehfeldt (artista polonês morto em 1993, um dos expoentes do grupo Fluxus) dizia: “Minha caixa postal é seu museu”.

Foi pelas mãos (ou por uma carta) de Rehfeldt, aliás, que Bruscky entrou para o circuito internacional da arte correio. Em “1970 e poucos”, ele recebeu uma carta de Rehfeldt, que havia conseguido seu endereço num catálogo sobre artistas brasileiros feito à época pelo francês Julien Blaine. Bruscky, então, repassou a correspondência que recebeu e deu sequência à “corrente”.

Os museus, para o artista, ainda não “entendem” tais trabalhos: são documentos ou obras de arte?

— Estive recentemente no MoMA discutindo com o diretor do centro de documentação do museu. Ele me mostrou muitas obras minhas que estão guardadas como correspondência (e não como obras de arte). Não sabem como catalogar. O Guggenheim comprou um classificado de jornal meu (feito em Nova York, nos anos 1980, quando o artista ganhou bolsa do próprio museu), e o pessoal da conservação foi contra. O curador bateu o pé e disse que fazia questão de comprar — conta Bruscky.

Ele não se incomoda com o desconforto das instituições (“Faço coisa que eu mesmo não entendo, imagina eles”, diverte-se) e com o fato de ter vivido, até pouco tempo, à margem do inflado mercado de arte. Se hoje uma obra dele dos anos 1970 pode ser vendida por US$ 15 mil, Bruscky passou a vida com o salário de funcionário público (do setor administrativo de um hospital em Recife). Fazia em dois dias o trabalho de uma semana para poder dedicar mais tempo ao fazer artístico.

— Eduquei meus filhos sem vender uma só obra de arte. Serei sempre independente. A vida é efêmera, por que a arte não pode ser? — diz ele. — As pessoas aceitam a efemeridade da vida, mas da arte, não. A arte tem que ser bonitinha, preservada para a eternidade, como se fosse uma coisa diferente da vida. Não vejo assim. Não separo arte e vida.

fonte:oglobo

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