A cultura popular de Pernambuco perdeu um de seus maiores defensores na manhã desta quarta-feira. O pesquisador Liêdo Maranhão, de 88 anos, morreu às 5h30 da manhã, após sofrer uma parada cardíaca. Ele estava internado no Hospital Santa Terezinha havia 3 meses, em decorrência de sequelas provocadas por um AVC, que o deixou sem andar e falar. O velório acontece a partir das 15h, no Memorial Guararapes, em Jaboatão dos Guararapes. A cremação acontece às 11h desta quinta, no mesmo local.
Dentista de formação, Liêdo Maranhão passou décadas coletando e pesquisando a cultura popular do Estado, trazendo a linguagem das ruas ao ambiente acadêmico. Ele mantinha nos fundos de casa, em Olinda, a Casa da Memória Popular, onde mantinha o seu acervo. Segundo o escritor e jornalista Urariano Mota, amigo do pesquisador, o valor de seu trabalho estava em coletar causos e informações de quem normalmente estava excluído da sociedade. “Era impossível você falar com ele e não dar grandes gargalhadas. Ele não tinha limites em captar a fala do povo. Ele registrava até o obsceno, mas tinha pureza de menino”.
Liêdo Maranhão deixa uma esposa, a espanhola Bernarda Ruiz, com quem era casado havia 60 anos, além de dois fihos, Roman e Ruth.
Leia a última estrevista de Liêdo Maranhão ao Viver:
Nas décadas de 1950 e 1960, o senhor ia quase diariamente ao Mercado de São José e levava dinheiro para o pessoal de lá. Sua mulher reclamava?
Minha mulher é espanhola, europeia, não gostava. Eu não tenho ambição, não gosto de automóvel, ando de ônibus. Dirigi um tempo, mas é um negócio horrível. O automóvel individualiza a pessoa. No ônibus, você vai junto. E hoje, com essas minissaias…
As mulheres mudaram muito?
Mudaram, claro. As mulheres são muito livres hoje, não tem mais aquele preconceito, aquela vergonha que tinha no meu tempo. As pessoas moralistas, puritanas, acho que isso é uma hipocrisia. Gosto do povo porque é solto, é leve. As pessoas que têm posse têm até medo de se aproximar das pessoas pobres.
O senhor ainda frequenta o mercado? Qual a última vez que foi?
Há uns 15 dias. Agora, eu estou sem condições. A idade, o medo de esquecer na rua. Eu ando com isso, olha (mostra o cartão que o filho fez), porque posso perder a memória.
O senhor tem algum livro inédito?
Eu tenho um sobre a zona do Recife. Eu era habitué da zona. Era um negócio bonito, as radiolas de ficha, as pensões, as prostitutas. Eu tinha uma ‘amigação’ lá no centro, Alice. Era o que a gente chamava ‘tabaco de caridade’. Eu, liso, estudante, não pagava. Ela até comprou um pijama para mim. Conheço muita zona. Em Amburgo, eram as mulheres nuas, na vitrine, sentadas em uma poltrona, com registradora e tudo. Na França, você estava na rua e a mulher abria a capa de pelo, nua. Mostrava retratos, dizia que tinha filhos para cuidar.
Qual o nome do livro?
O porto e a zona do Recife – Opening city dos mariners, porque os americanos chamavam de cidade aberta. Aqui, quando veio Rossellini, Gilberto Freyre mandou levar para a zona. Ele era casado com Ingrid Bergman e se engraçou com uma prostituta. E ela ‘vou nada, um homem chato’. A zona era um cartão de visitas do Recife.
Por que o senhor gosta de pesquisar sobre a safadeza?
Porque é a sinceridade do povo. Lolita, o primeiro homossexual a enfrentar a burguesia pernambucana, dizia “a delicadeza é um dom, mas a safadeza é que é bom”. Antigamente, quando os frangos – que viado é coisa do Pasquim – passavam, o povo gritava “bota água no fogo para pelar o frango”. Havia uma discriminação muito grande.
O senhor tinha preconceito?
Não. Eu comi muito frango. A gente comia ali nos pés de escada. Tinha um, o frango Zé, naquele tempo ele tinha muito medo para não cair na boca dos meninos. Aí ele me chamou para comer uma macarronada na Leiteria Vitória e disse “Liêdo, vamos falar em inglês”.
E isso era comum?
Antigamente, mulher era um negócio meio difícil. A gente ia para a zona e sobrava. Os frangos eram a saída, Pé de Papo, Gaguinho, Carinhoso. A gente comia nos pés de escada. Antigamente, não se fechavam os pés de escada. Imperatriz, Rua Nova, a gente levava para lá. Eu digo isso em um livro meu.
Seu filho mora perto?
Mora, aqui na cidade. Roman tem umas coisas engraçadas. Minha mulher queria que ele fosse engenheiro. E aqui meu filho era incapaz de estudar. Então ela matriculou Roman na Espanha e voltou toda satisfeita. Aí um dia ele escreveu “Mamãe, deixei de fazer suas merdas e quero fazer as minhas”.
O que o senhor faz no dia a dia? Acorda cedo?
O sono de velho é acordar para mijar a cada hora. Levanto às 5h, 4h, 3h, faço um café, fico deitado, feito cobra de jardim, leio, vou à padaria às vezes, brinco com um, com outro, conto piada.
O senhor ganha dinheiro com os livros?
Sempre me custeei com o trabalho de dentista. Entrei por concurso federal. A banca eram uns caras chatos, com nome estrangeirado, metidos. Na véspera do concurso, fui a uma conferência com Josué de Castro, no Teatro de Santa Isabel. Aí minha mulher: “você é um irresponsável. Amanhã, você vai fazer concurso”. Eu disse: “mas o cavalo quando é bom descansa na véspera da corrida.” Lá em Beberibe, o pessoal gostava muito de mim. Os médicos diziam que eu dava muita liberdade. Porra, uma gente lascada, que chega de madrugada, entra na fila e muitas vezes não encontra vaga.
Como o senhor começou a gostar do mercado?
Quando a gente fica fora do país por muito tempo, fica mais brasileiro. Quando eu estava na Espanha, visitei o Palácio da Alhambra. Ele estava abandonado e foi redescoberto por um norte-americano, Washington Ivg, que escreveu Cuentos de la Alhambra (Contos de Alhambra). Quando cheguei à praça, começaram a me contar histórias. “Pronto, isso é minha Alhambra”. Aí comecei a escrever e anotar. Naquela época da ditadura, eles tinham medo. Eu era do partido comunista, do MCB, e arrecadava dinheiro da classe médica. Mas sou muito covarde. No golpe, fiquei com um medo danado. Não aguento dor física.
O pesquisador Liêdo Maranhão, de 88 anos, morreu às 5h30 da manhã, após sofrer uma parada cardíaca. Ele estava internado no Hospital Santa Terezinha havia 3 meses, em decorrência de sequelas provocadas por um AVC. Foto: Alcione Ferreira/DP/D.A Press/Arquivo