A natural confusão dos manifestantes, a obtusa lógica dos especialistas
Por Cristiano Ramos
para o Acerto de Contas
As manifestações que tomam conta das ruas de São Paulo e das pautas de discussões em todo o País conseguiram efeitos colaterais dos mais oportunos, como explicitar o despreparo (quando não a desonestidade) de grande parte da mídia e o péssimo nível de muitos de nossos intelectuais. Protestos serem confusos ou difusos é algo normalíssimo, principalmente quando refletem um sentimento de insatisfação não pontual, de descontentamento abrangente, de contrariedades acumuladas. Entretanto, se a confusão vem de análises jornalísticas, políticas, sociológicas ou filosóficas, aí negócio muda de figura.
Incoerência racionalizada e vendida como informação ou texto de opinião deixa de ser natural ruído de ideias e passa a ser simples equívoco (nos casos menos graves) ou estupidez mesmo (em seus momentos mais exacerbados). Bobagem de intelectual não se pode eximida pela complexidade dos fatos abordados. Está desinformado, ou não domina minimamente os conceitos que vai utilizar? Então, faça favor para todo mundo, publique textos sobre Big Brother e afins.
Alguns casos merecem destaque, como o de Arnaldo Jabor, que confessou coisa nada secreta: possui espaços privilegiados para veicular asneiras aos montes, sem sequer ter o trabalho de se informar minimamente sobre os temas comentados. Contudo, como qualquer sujeito não só despreparado, mas também mal intencionado, ele transformou o mea culpa em oportunidade de vender seu raivoso peixe político.
Já no Manhattan Connection, da Globo News (programa do qual o próprio Jabor fez parte), os protestos ocorridos em SP foram desqualificados porque “não mais se limitam a reclamar contra o aumento de passagens”. Ora, primeiro não existe esse requisito estapafúrdio, que manifestantes precisam ser monotemáticos e radicalmente fieis à demanda original; em segundo, é natural que todo descontentamento que ganhe tais dimensões acabe reunindo díspares pessoas e gritas, espera-se até que conflitos de discursos e interesses assomem.
Muitos dos jornais e revistas seguiram marés previsíveis: inicialmente, e como é de costume, generalizaram e atacaram os manifestantes. Depois, constatando os excessos da polícia e a nada simplória natureza dos protestos, trataram de capitalizar os eventos em benefício próprio.
Os pitacos toscos não poderiam ignorar as redes sociais, verdadeiro celeiro de pseudointelectuais munidos de frases-prontas-para-todos-os-cadinhos. Cidadãos não precisam ser embasados e coerentes em seus posts; na verdade, nesses espaços da internet eles estão sujeitos a quase nada. O mesmo não vale para supostos estudiosos e formadores de opinião, que fazem da web uma vitrine onde exporem suas vestes mais frágeis e démodés. Estes deveriam zelar pela boa reputação que por acaso tenham, ou começar a alicerçar alguma que almejem.
Muitos dos sofismas têm raízes bem plantadas, são repetições de clichês, expressam a incapacidade de nossos pesquisadores e analistas de conseguirem formular raciocínios sem recaírem nos lugares-comuns mais gastos e obtusos. E não se trata de privilégio da “direita”, dos “conservadores”. Show de teorias-de-bolso é democrático, possui representantes de todas as cores, credos e legendas.
Entre os “pensadores” de esquerda, por exemplo, é comum que atrelem a violência policial a partidos, ao sistema democrático, ao capitalismo etc. Questão não deveria ser partidarizada, ou resumida à escolha de modelo de governo. Não estamos nos anos 60, nem na Primavera Árabe. PSDB oprime estudantes em SP, assim como PT fizera com manifestantes do Recife (quando também reclamaram contra aumento), e de modo muito similar o PSB baniu violentamente moradores da comunidade Vila do Campo, a fim de abrir caminho para especulação imobiliária do litoral pernambucano. São todos signatários dessa lógica onde o Estado detém exclusividade no uso da brutalidade como controle, a serviço de uma suposta ordem social. Isso vem de muito, nasce já durante processo de configuração do Estado Moderno. As poucas gestões socialistas ou comunistas não tiveram mãos menos pesadas na utilização do aparato de segurança – mudam os objetivos, mas o pau está sempre pronto para cantar, porrada institucional responde a todos os dialetos de comando. Que o digam certas praças do Oriente, de África, da Espanha, Chile, EUA…
Se quisermos mesmo discutir o assunto, larguemos discursos anacrônicos, redutores e estrategicamente equivocados. Caminho não é separar, dividir a população, mas chamar todos (de esquerda, de direita, moderados, anarquistas, ou seja lá) e cobrar um Estado que de fato reveja suas ferramentas de coerção, sua filosofia de garantir alguns direitos a partir da supressão estúpida de tantos outros.
Mais que isso: atitudes partidarizantes vão de encontro a quase todas as inquietudes que sopram a fogueira dessas manifestações. Muitos daqueles que estão nas ruas protestando não se sentem representados por partido ou dogma algum. Aliás, eles se perguntam justamente quais legendas e ideologias ainda resistem à cínica toada de nossos políticos, que chamam de “nova forma de governar” o que na verdade tem nada de novo: corporativismo, interesses pessoais se sobrepondo às bandeiras e à legislação, blindagem de corruptos, perseguição social disfarçada de pregação religiosa, e por aí vai – e vai muito mal!
Dado feliz é que esses mesmos políticos, comunicadores e intelectuais não conseguem abafar o barulho que vem das ruas. Seus interesses, manuais e teorias tão enviesados não podem além de tentar carona no redemunho. Não sabemos quanto tempo durará esse clima de contestação, tampouco se conseguirá desdobramentos articulados. Certo é que, independente da noite que vem, eles já conseguiram perturbar o sono cômodo de nossa democracia. E democracias precisam ser arrancadas dos mornos lençóis regularmente, se ainda pretendem futuro com mínimo de dignidade.
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Cristiano Ramos é professor e jornalista

