Fotos de Coletivo Além.
A experiência de liberdade no Cais Estelita não se limita à atuação incisiva dos ativistas em um novo projeto possível para Cidade de Recife. Ocupado há algumas semanas por jovens e estudantes, o movimento questiona empreendimentos milionários e junta forças para ressignificar o acesso do público para o público, em um forte envolvimento com as comunidades e favelas da região. A transformação do comportamento, entretanto, não se pode supor efetiva sem que haja transformação dos seres políticos e apaixonados que ali residem. Nesse ensaio, a intimidade dos corpos se encontra com a frieza do abandono, o macio e o enferrujado, improvável. A liberdade surge de onde sempre deveria vir: de nossas mentes e corações em busca do novo.
O corpo é a maneira possível de experimentar o mundo. É através da sola dos pés que tocam o asfalto, do ar grosso que entra pelas narinas em meio ao trânsito, dos sabores das frutas maduras vendidas no sinal, da luz que irrompe a retina no meio-dia quente de Recife. Há tempos sabemos não ser mais na assepsia da alma que nos encontramos com a potência da vida, mas sim em toda a complexidade que envolve ser, e não apenas ser, um corpo. Estão aí as neurociências cognitivas tentando provar que inclusive a mente é corpórea. Aqui estamos, nus, certos de que não há nada mais essencial que exercitar a presença, a liberdade e a potência dos nossos corpos. Espinoza pergunta: “o que pode o corpo?” Contágio, covibração, invenção. A ideia do genital inato de Artaud vem dizer que não somos reféns absolutos de uma essência, de um modo de ser, mas que podemos reinventar-nos, dar-nos nascimento novamente, e novamente, e quantas vezes julgarmos necessário reinaugurarmos nossos atos no mundo.
E se os nossos corpos também são construídos das toneladas de cimento, tijolos e barras de ferro que compõem nossas cidades? O corpo não apenas habita a cidade, mas também é a cidade, em um imbricamento sem fronteiras, em um jogo de extensões. E se levarmos em consideração a vida amortecida que vivemos na aridez de algumas metrópoles, sequestradas pela política de interesses particulares, estar de corpo presente já é em si um ato que inaugura uma nova forma de ser nesse duplo corpo urbano. Não há cidade sem corpos.
Como diz Heidegger, “quando começo a atravessar a sala em direção à saída, já estou lá na saída. Não me seria possível percorrer a sala se eu não fosse de tal modo que sou aquele que está lá. Nunca estou somente aqui como um corpo encapsulado, mas estou lá, ou seja, tendo sobre mim o espaço”. A cidade está dentro dos nossos corpos e nossos corpos dentro do corpo da cidade, em um conjunto de relações simultâneas. Por isso a experiência da vida na cidade é tão importante, pois é nesse habitar coletivo que geramos o que somos.
Ocupa-se. E ocupa-se com corpos um terreno de mais de um quilômetro. Sonhos e desejos tomam corpo e alcançam o justo tamanho do terreno. Aos poucos o espaço desnudo do Cais José Estelita vai tomando a forma das gentes que o habitam. Que cidade nossos corpos precisam, para não se tornarem adoecidos? Que veias e vias precisamos abrir para que possamos sair de nossas capsulas? Que espaços orgânicos, vivos, precisamos construir para podermos contaminar uns aos outros, no melhor sentido da palavra contágio? É preciso entregar-se aos espaços para habitá-los. O corpo humano, em sua grande variedade de formas, é o que deve guiar a construção dessa moradia comum. Nossos corpos querem uma cidade que preze pela construção coletiva e pela liberdade de pensa-la, repensa-la e reinaugura-la sempre.
Texto: #OcupeEstelita
fonte:ninja
[…] de uma pessoa por opção sexual, roupas, corpo ou conta bancária, mesmo em uma sociedade que a nudez e o amor livre parecem escandalizar mais do que homicídios, estupros, corrupção, roubos e […]