Carta de despedida para a escritora palestina Dima Diab. Por Flávio Chaves

    Por Flávio Chaves – Jornalista, poeta, escritor e membro da Academia Pernambucana de Letras. Foi Delegado Federal/Minc  –   Confreira Dima,  Escrevo-te de um lugar onde as bombas ainda não caem, mas onde as notícias caem como pedras afiadas sobre o peito. Aqui, as ruas não estão cobertas de pó, mas há uma poeira invisível que se levanta toda vez que uma vida é arrancada. Carrego na pele uma geografia que não aparece em mapas, mas que se inscreve no sangue: o território secreto onde cada escritor é vizinho do outro, não importa a distância, não importa a língua, não importa o nome do céu que cobre a sua casa. Por isso, quando mataram você, Dima, mataram também um quarto da minha casa interior, arrancaram páginas do meu próprio livro, fizeram ruir uma parede erguida de sonhos e deixaram em mim um buraco que não se fecha.

Ainda vejo, com a nitidez de um sonho que não quer acordar, a tua voz dançando no vídeo em que mostravas a casa original. Tu a tocavas com o olhar, como quem acaricia um relicário, e ao mesmo tempo oferecias ao mundo a chave desse cofre íntimo. Tu não filmavas paredes, tu filmavas a tua infância, os ecos das conversas familiares, o cheiro do pão que talvez um dia tenha saído daquele forno. E havia, na forma como dizias que querias voltar, uma fidelidade que não se negocia, um amor que nem mesmo a guerra consegue corromper.

Penso no instante em que, sem saber, já estavas a poucos passos do silêncio forçado. Imagino-te cercada de vozes familiares, acreditando que aquela casa temporária poderia abrigar o descanso de uma noite inteira. Mas o destino, cruel e impaciente, vinha te empurrando para o abismo. E sinto, com um peso que as palavras não suportam sozinhas, que essa injustiça é tão vasta que só o universo, em sua eternidade, poderá medi-la.

Dizem que foste morta com tua família, mas eu não acredito na morte que eles anunciam. Creio que há um tipo de permanência que não se dobra à brutalidade, um sopro que não se apaga, uma seiva que continua a correr mesmo depois de cortarem o tronco. Tu segues viva, espalhada nas frases que deixaste, nas memórias que semeaste, no pulsar inquieto da tua terra. Mesmo que tenham destruído teu corpo, não puderam tocar a nascente onde tuas palavras bebiam.

Escrevo-te para dizer que o mundo da literatura está de luto. E este luto é pesado como pedra, mas também leve como brisa, porque é dor e é resistência ao mesmo tempo. Não importa onde a vida é atacada, não importa sob que bandeira ou em que idioma, quando a morte chega às portas de um escritor, todos os que escrevem sentem o chão ceder. Somos uma só casa, feita de papel e sonho, e hoje essa casa inteira chora por ti, como se o vento passasse por todas as suas janelas ao mesmo tempo.

Sei que não te alcanço mais, que nenhuma carta minha atravessará o deserto e o escombro até onde estás. Mas deixo aqui minha promessa: enquanto eu escrever, teu nome será lembrado, e cada vez que o fizer será como acender uma pequena luz no escuro que tentaram impor. E se um dia perguntarem quem foi Dima Diab, direi que foi uma casa feita de palavras, erguida sobre um chão de memórias, com janelas abertas para a esperança e um telhado que resistia às tempestades. E que, mesmo quando as bombas derrubaram suas paredes, ninguém conseguiu arrancar a sua luz, porque ela se espalhou para sempre no horizonte dos que ainda acreditam que escrever é a forma mais alta de permanecer vivo.

Com esperança,
Flávio Chaves

A morte da escritora Dima Diab e a ferida aberta da palavra. Por Flávio Chaves

Quando um escritor morre, o mundo perde um pedaço de si

  Por Flávio Chaves – Jornalista, poeta, escritor e membro da Academia Pernambucana de Letras. Foi Delegado Federal/Minc  –  Em mais um ato de violência que atravessa o corpo e a alma de um povo, a escritora palestina Dima Diab foi assassinada junto com sua família no sul de Gaza, sob o impacto de um bombardeio israelense que não distingue inocentes de combatentes, livros de armas, memórias de alvos. Foram dias de fuga, de desalento e de esperança rarefeita. Deixaram Rafah sob o peso das ordens militares, buscando refúgio numa casa que deveria oferecer silêncio e segurança, mas que foi transformada em pó pelo mesmo regime de apartheid que, ao destruir paredes, tenta destruir também a possibilidade de um povo contar a sua própria história.

Poucos dias antes de sua morte, Dima havia compartilhado um vídeo de sua casa original. As imagens não eram apenas um registro físico, eram um abraço à memória, uma promessa íntima de retorno, como quem fala a uma casa como se ela fosse mãe. Ali, o sonho permanecia intacto, ainda que o horizonte estivesse tomado pela guerra. E agora, essa casa vive apenas nos olhos de quem a viu, na voz que se calou, no eco das palavras que a autora deixou gravadas no tempo.

Dima Diab não era apenas uma escritora. Era guardiã da memória da Palestina, narradora de sua dor e de sua beleza, tecelã de histórias que, mesmo quando falavam do sofrimento, carregavam o peso e a dignidade da resistência. Sua morte não é apenas mais um número na contagem sombria das vítimas. É uma mutilação do espírito coletivo, uma amputação na literatura, um silenciamento que reverbera para além de Gaza.

Escritora palestina Dima Diab, com seu gatinho

Quando um escritor morre, não é apenas uma vida que se extingue. É uma biblioteca inteira que se apaga, é uma ponte que desmorona entre o que fomos e o que poderíamos ter sido. Sinto, na morte de Dima, o mesmo vazio que sinto quando a página em branco me olha e não encontro mais palavras. Porque cada escritor que parte leva consigo uma parte invisível de todos nós que escrevemos, como se o nosso idioma perdesse um tom, uma cor, uma respiração.

O assassinato de Dima é mais do que um crime de guerra. É um ataque à cultura, à arte, à palavra como abrigo. É a tentativa deliberada de apagar a memória de um povo, golpeando aqueles que a mantêm viva. Israel não destruiu apenas um lar, destruiu um espaço onde a literatura respirava, onde a vida ainda era possível apesar do cerco.

O mundo das letras está de luto. Este luto não conhece fronteiras, não se limita à Palestina, porque a palavra pertence a todos os que têm sede de humanidade. Hoje, Gaza sangra, mas o sangue é de todos nós. E a nossa resposta, diante de tanta morte, só pode ser a defesa incondicional da vida, onde quer que ela respire, porque matar um escritor é tentar matar a própria possibilidade de sonhar.

E enquanto houver alguém capaz de lembrar o nome de Dima Diab, nenhuma bomba terá conseguido destruir completamente a sua casa, porque as paredes feitas de palavras não caem.

A crônica domingueira. Por Magno Martins

Por Magno Martins – Jornalista, poeta e escritor  – Sempre tive um pé atrás, uma desconfiança que parecia não ser vencida, com as comemorações convencionais ou comerciais, como o Dia dos Pais, celebrado neste domingo. Entendia que haviam sido criadas apenas para fazer a alegria dos comerciantes nos shoppings.