A crônica domingueira. Por Magno Martins

Por Magno Martins – Jornalista, poeta e escritor  –  O mundo é dos retirantes. O que seria de São Paulo sem a mão de obra dos nordestinos fugitivos da seca? E de Brasília, construída por escravos candangos, que com o suor do seu rosto fizeram o sonho de JK virar a obra arquitetônica mais bela e apaixonante deste planeta.

Vídeo: O silêncio que grita das ruas. Por Flávio Chaves

O palco da solidão urbana com a vida encenada no frio da calçada

      Por Flávio Chaves – Jornalista, poeta, escritor e membro da Academia Pernambucana de Letras. Foi Delegado Federal/Minc  –  Na tela de um celular, a cena é curta, mas pesa como um livro inteiro. Antônio Abujamra, ator, jornalista e filósofo, empresta sua voz grave e seu olhar inquisitivo para registrar uma realidade que muitos preferem ignorar. À sua frente, um homem sentado, o rosto marcado por sulcos profundos, a barba malcuidada, os olhos cansados como se carregassem o peso de um século. Quando revela sua idade, 57 anos, a surpresa é inevitável: a rua envelhece mais do que o tempo.

As perguntas de Abujamra são poucas, diretas. As respostas, curtas, quase secas. Mas cada silêncio entre uma frase e outra escancara uma verdade que não cabe em palavras: viver na rua é estar fora do relógio social, é assistir ao movimento do mundo como quem não tem direito de participar dele. O homem fala pouco, mas seu olhar diz muito, e nele há uma mistura de desamparo e dignidade que nenhum discurso político seria capaz de traduzir.

O vídeo ecoa porque revela aquilo que tentamos não ver. Não é novidade que milhares de brasileiros vivem hoje em situação de rua, mas quando um rosto, um corpo e uma história se colocam diante da câmera, a estatística ganha carne, ossos e sofrimento. E então percebemos que a pobreza não é apenas a ausência de dinheiro; é o efeito de uma engrenagem social que, bem azeitada para alguns, emperra para muitos.

A estrutura de poder, travestida de normalidade, não deixa que esses cidadãos saiam do lugar onde estão. Quem mora na rua não é apenas alguém “sem teto”: é alguém expulso sistematicamente de qualquer rede de proteção. Faltam políticas públicas consistentes, faltam oportunidades de trabalho reais, falta um Estado que olhe para além das vitrines iluminadas das grandes avenidas. E sobra criminalização, preconceito, indiferença.

A entrevista conduzida por Abujamra é um espelho incômodo: ali está um homem, mas poderia estar qualquer um de nós se a vida tivesse dobrado em outra esquina. O rosto de 57 anos que parece muito mais denuncia não só a dureza da rua, mas também a falência de uma sociedade que naturalizou o abandono.

Mais do que uma conversa, o vídeo é um grito silencioso. Ele nos obriga a pensar que, enquanto não enfrentarmos as raízes da exclusão ,a desigualdade, o desmonte da assistência social, a indiferença coletiva, seguiremos contando histórias de homens e mulheres que envelhecem antes do tempo, sentados no chão frio da cidade, invisíveis até que uma câmera os torne temporariamente visíveis.

E talvez aí resida a grande lição de Abujamra: transformar a entrevista em espelho, o silêncio em filosofia, a rua em palco. Diante daquele homem, a câmera não registrou apenas a miséria, registrou a nossa incapacidade de amar como sociedade. Aquele olhar de 57 anos que parecia ser mais permanece: não como lembrança, mas como interrogação. O que faremos, enfim, para que a vida não seja apenas um ato cruel encenado nas calçadas?

Veja o vídeo:

Hiroshima, 80. Por José Paulo Cavalcanti Filho

    Por José Paulo Cavalcanti Filho  –  Escritor, poeta, membro das Academias Pernambucana de Letras, Brasileira de Letras e Portuguesa de Letras. É  um dos maiores conhecedores da obra de Fernando Pessoa. Integrou a Comissão da Verdade   –   Robert Oppenheimer gostava de ver, durante horas, barcos passando sem pressa no Rio Potomac (Virgínia Ocidental). Talvez porque lhe lembrassem todos nós, habitantes da terra, que como aquelas embarcações navegamos nas águas do tempo. Não só ele, como chefe; todos, no grupo do Projeto Manhattan, eram pessoas sensíveis.

Juntos, gostavam de ouvir música romântica, como a ópera em cinco atos Fausto, de Gounuod, a história de um homem triste que fez pacto com o Diabo. E de ver ballet como O Aprendiz de Feiticeiro, de Paul Dukas, a partir de um poema de Goethe em que se retrata os perigos de usar tecnologias poderosas, que assistiram nas vésperas de explodir Hiroshima.

Uma das bombas por eles feitas, de Urânio 235, acabou batizada como Little Boy (rapazinho). A outra, de Plutônio Processado, era Fat Man (homem gordo). Igual à que foi antes detonada, com êxito, em Los Alamos, deserto de Alamogordo (Novo México). E o próprio nome do projeto, Manhattan, foi escolhido em homenagem à enorme população de Nova York. Tudo para lembrar que o objetivo daquelas pessoas delicadas, amantes de poesia, música e ballet, era desintegrar seres humanos. Como os milhões que habitavam a ilha.

Não por acaso o barulho da explosão, se viu no teste realizado, tinha o som quase perfeito de uma gargalhada humana. Em meio a elétrons e nêutrons se despedaçando, um estranho riso que vinha do coração da terra e subia na direção do céu, como se procurasse Deus, misturado a fogo, chumbo, fumaça, morte, desalento e lágrimas.

Era uma preparação. Uma premonição. Um aviso. Pouco antes do caos, em 10 de março, 343 bombardeiros atacaram Tóquio usando bombas de Napalm. No chão, ficaram 83 mil corpos. Logo depois, em 15 de março, o imperador Hiroito decidiu se render. Militares, à frente o major Hatanaka, se recusaram a aceitar essa vergonha, assim consideravam. E tentaram dar um Golpe de Estado que lhes permitissem resistir. Sem sucesso. A confusão era generalizada. Mas ninguém ali tinha qualquer dúvida sobre o futuro sombrio que aguardava seu povo.

Fins de julho de 1945. A guerra estava decidida. Alemães, já rendidos. Japoneses tentavam, desesperadamente, apenas pedindo que seu imperador Hiroito fosse poupado. Não sabiam então é que outra guerra, por dentro daquela, já tinha começado. Uma guerra fria.

Stalin se preparava para invadir o Japão, o que para ele seria glória. Sinal de seu poder. Só que também afronta, sabiam todos, ao império americano. Sem contar que chegara o tempo da vingança contra aqueles que destruíram Peal Harbor e mataram 12 mil em Okinawa.

Só na semana que precedeu Hiroshima, como aperitivo, foram 100 mil corpos no chão de Tóquio. Com uso apenas de bombas tradicionais. Sabor doce de vísceras e sangue a serviço da democracia, já prenunciando que o pior estava por vir.

Ao Japão voou, primeiro, a de Urânio. Com incertezas sobre se iria funcionar. Mas, desse errado, e sobrava outra, de Plutônio, com tecnologia já testada.

Um avião B-29 da US Air Force foi adaptado para acomodar aquele gigante de aço atômico, com 15 toneladas.  Em homenagem ao piloto que lançaria essa bomba, Paul Tibbets Jr., foi batizado como Enola Gay (Tibbets), nome de sua mãe. A pobre mulher não deve ter gostado, mais tarde, ao ver seu nome associado a tanta carnificina.

Nos Estados Unidos, e mesmo fora dele, muitas vozes pediam clemência. Queriam o fim da matança. Em vão.

Segunda, 6 de agosto. Ao sol nascente das 9.15, Enola Gay detonou sua bomba em Hiroshima. A explosão se deu 570 metros acima do solo, produzindo um cogumelo de fumaça com 18 quilômetros de altura. E a temperatura, na terra, chegou a 300 graus.

Little Boy fez, num primeiro momento, 120 mil vítimas. No término do ano, por conta da radiação, seriam 140 mil corpos. Quase todas crianças, mulheres e velhos, que pais e maridos estavam nas frentes de batalha. A cidade foi escolhida por acaso, num sorteio entre quatro. Sem que houvesse, ali, um único objetivo militar.

Fim de tarde, relatório da Cruz Vermelha informava que naquele resto de tijolos, telhas e carnes já não havia nada mais a queimar.

Depois, o episódio inspirou filme da Nouvelle Vague (de 1959), Hiroshima, mon Amour, de Alain Renais. A história do romance implausível entre uma francesa (Emanuelle Riva) e um japonês (Eiji Okada), para Claude Chabrol “o mais belo filme que já vi”. Só que a arte, pura e comovente, nem sempre imita nossa vida.

Aproveito e lembro um 16 de março em que dona Maria Lia fazia 40 anos. Mandei, para ela, esse bilhete: “Minha mãe, não é por nada não mas a IDA começa aos 40”. Sem resposta. Mas, quando fez 80, seu motorista chegou bem cedinho com esse recado: “Meu filho, esperei 40 anos para lhe responder. A IDA pode ser que comece aos 40. Mas a VIDA começa, mesmo, é aos 80”. Como agora, nos 80 anos de Hiroshima, em que deveríamos celebrar não a devastação do passado, mas a vida futura de que falava com tanto gosto e alegria dona Maria Lia.

Voltemos às bombas atômicas, posto que sua história não parou aí. Além das duas inicialmente fabricadas (a primeira testada com êxito, e a segunda Little Boy) houve, depois, uma terceira e derradeira, de Plutônio, igual àquela do teste. Era Fat Man.

Faltava decidir o que fazer com ela. Difícil entender, fosse lançada, posto não haver mais guerra. Qual a razão de continuar aquele horror? Só que tanto dinheiro não podia ser desperdiçado, cerca de 50 bilhões de dólares a valor de hoje. Era preciso dá-lhe um fim. A burocracia governamental pedia mais mortes.

Quinta, 9 de agosto. Às 11.02 da manhã, Fat Man destroçou mais 90 mil vidas em Nagasaki. Novamente, uma cidade sem qualquer alvo militar. Novamente, só crianças, mulheres e velhos. Novamente sem tristezas, lágrimas, culpas ou remorsos.

Oppenheimer, depois, se recusou a fazer uma bomba mais potente ainda. O macartismo considerou imperdoável ingratidão para com país que o acolhera tão generosamente. Seu irmão e a mulher dele acabaram processados. Acusados de ser comunistas, foram proibidos de trabalhar para o governo ou de ensinar. A guerra fria começava a fazer vítimas, com menos sangue embora, também nos Estados Unidos.

Agora, comemoramos 80 anos desse holocausto. Preocupados que os velhos B-52 já foram substituídos por modernos B61-11. Maiores, capazes de transportar várias bombas. E muitos outros países já têm, agora, suas próprias.

Por falar nisso o Tratado de Proibição de Testes Nucleares, firmado por todos os 193 países da ONU, já perdeu a Coreia, em 2003 (que tem a bomba); e agora, também, Índia e Paquistão (que também tem as suas), mais Israel e Sudão. Só para lembrar, o Irã ainda faz parte dele, embora não se submeta a inspeções. Sendo certo que um tratado como esse não garante nada.

A humanidade vê, com horror, esse futuro de incertezas planetárias. Enquanto cada um de nós ainda espera, com o coração, por ventos de esperanças. E sonha, secretamente, com barcos navegando nas águas da paz.