
Por Silvia Bessa
Estávamos diante do corpo de Camila – uma menina de 24 anos, repórter recém-formada que se internou num hospital no primeiro dia de férias, nas primeiras férias dela como jornalista. Chorávamos a futura ausência de Camila, o inconformismo dos mais íntimos diante do triste destino, a fatalidade de um câncer linfático que não lhe deu a chance de lutar mais. Sofríamos a impermanência do ser, a dor da família em torno do caixão que guardava Camila Souza. Compartilhávamos condolências com abraços que nunca demos.
O enxugar de lágrimas de um amigo me fez engolir as minhas: era Wagner Oliveira, repórter policial experiente que já viu um sem número de mortos. Não seria um repórter com essa bagagem blindado de tal emoção?, perguntei-me infantilmente; e talvez muitos perguntariam, assim como nos perguntamos sobre a suposta frieza de médicos para sofrimentos alheios.
Peguei carona de volta à redação no mesmo carro que Wagner e não me contive em ouvi-lo. “Para falar a verdade, lembro de cada corpo que vi e enterro que fui. De cenas de mães, pais e irmãos. O pior momento para mim é o velório. Nos fazem pensar sobre nós mesmos, sobre nossa família”, contou-me, gentilmente explicando sentimentos sob tristeza pessoal.
“Aqui, chorei porque era uma colega de trabalho, alguém que eu conhecia, mas chorei ao ver muitos desconhecidos. Por cada um, sofri por um motivo”, emendou, listando nomes de vítimas – de violência urbana, sobretudo.
Pensei nas poucas vezes em que cumpri a função de repórter policial e do quanto as ocasiões me marcaram. Das vezes em que fui ao Instituto Médico Legal e do como era difícil abordar famílias num momento de perda, de quando estive em São Luís do Maranhão e entrei na casa da família constrangida para perguntar sobre a doença que acometia o cidadão pelo qual os familiares estavam aturdidos, da vez em que fui cobrir o velório de um vereador do Recife que deixou duas famílias e lamentei estar ali para ver a disputa de poder das duas alas antes do enterro. Do quanto fiquei marcada por esses poucos episódios e do quanto é desafiador ser técnico, profissional e manter a serenidade. Pegar a caneta, anotar frases, engatar uma pergunta útil e narrar o acontecido.
Abatida pela partida de Camila e reflexões sobre os desafios do jornalismo, me deparei com uma definição dada pelo jornalista Paulo Goethe que achei uma das mais precisas dos últimos tempos. Jornalismo, diz ele, é “uma profissão que não se pode parar para chorar suas perdas”. “As notícias cada vez mais urgentes” – continua – competem “pela atenção do leitor nas menos de 24 horas de existência antes da chegada do novo exemplar”. No dia seguinte, lembra Goethe, tem que se começar tudo de novo. “Porque é nosso papel e porque o jornal é feito das vidas das pessoas”.
Não é fácil ser jornalista.