Arraes, Rubens Paiva e um Fusca verde

Por José Almino de Alencar
Do Diario de Pernambuco

Miguel Arraes foi o segundo prefeito do Recife eleito diretamente pelo voto, em 2 de agosto de 1959. A cidade conquistara este direito 4 anos antes, através de Lei Federal. O chefe do executivo municipal – forte do apoio popular direto, adquiriria uma expressão política singular no estado. Assessorado por um número considerável de quadros técnicos e intelectuais ávidos de participação no que se anunciava como um novo projeto para a cidade, Arraes conduziu uma administração operosa, voltada em particular para os bairros pobres.

Como prefeito, cabia-lhe o uso de automóvel com motorista, mas adotou um meio diferente: requisitou da frota municipal um Volkswagen, conhecido como Fusca, verde e que conduzia pessoalmente. Há controvérsias sobre as suas habilidades na direção, mas creio que a conjunção Arraes e fusca não lhe eram desfavorável aos olhos dos eleitores. E, como seu filho e frequente carona, disso pude testemunhar com frequência.

Pouco mais de um ano depois de sua posse, faleceu minha mãe, Célia, aos trinta e seis anos. Éramos oito filhos. Dias depois, ele passa a dividir comigo o meu quarto: duas camas de solteiro cobertas por cortinados, servidas pelo sopro de um ventilador de mesa que lutava para espantar as muriçocas do Zumbi, bairro onde morávamos.

Meu pai fechara o quarto do casal. O gesto não carecia de explicação e calara-me fundo. Eu tinha treze anos e passei a ser convidado para acompanhá-lo – sempre no Fusca – nas inaugurações, visitas às obras, reuniões com associações de bairro onde ele me fazia ver como pequenas intervenções (um chafariz, uma escadaria) poderiam fazer diferença considerável na vida das pessoas.

A eleição para o governo do estado seria em 1962. O Recife concentrava 25% do eleitorado de Pernambuco. Uma candidatura que obtivesse significativa maioria na cidade poderia vencer a disputa. Forte com a popularidade alcançada por sua administração, Arraes elege-se governador.

Na América Latina, a Guerra Fria se viu ainda mais intensa após a Revolução Cubana, em 1959. O governo dos Estados Unidos estende em muito a sua atuação na vida política brasileira, através de organizações de assistência, de fato laranjas que repassavam dinheiro para candidaturas de simpatizantes. Uma delas, o Instituto Brasileiro de Ação Democrática (IBAD) despendeu enormes quantias na campanha em Pernambuco. Nela, materializava-se o conflito entre a direita e a esquerda no Brasil. Após o pleito, uma Comissão de Inquérito foi criada na Câmara Federal para investigar a ação do IBAD nas eleições. O seu vice-presidente era o deputado Rubens Paiva.

O governador de Pernambuco, por ínvios caminhos, obtivera vasto material sobre o financiamento americano e foi convocado para depor. Durante o seu depoimento (22/08/1963), reaparece o Fusca em uma pergunta do deputado Rubens Paiva:

— Senhor governador, desejo trazer a esta comissão um fato que me parece da mais alta gravidade e que me foi revelado por um deputado federal com assento nesta Casa, adversário de V.Exa., de que durante a campanha eleitoral V.Exa. utilizava um pequeno automóvel Volkswagen, e que os homens do IBAD, como já haviam feito no Rio de Janeiro, eliminando um determinado cidadão que contrariava as intenções dessa entidade, promoveram em Pernambuco, ao sentirem que seriam batidos nas urnas por V.Exa, uma reunião em que estavam presentes todos os dirigentes do IBAD, sendo que nessa reunião, sob o protesto de um militar presente, ficou acertada a eliminação física de V.Exa., através de um possível acidente de trânsito, no qual um grande caminhão abalroaria o Volkswagen que V.Exa. utilizaria. Tem V.Exa. conhecimento disso e poderá trazer algum esclarecimento sobre este fato estarrecedor?

Arraes respondeu que tinha conhecimento dessa e de outras ameaças: “Elas visam, certamente, a tirar-me do caminho que me tracei na vida pública e dele não haverei de sair. Sou um homem marcado por aqueles que combatem os interesses do Brasil. Sou um homem marcado, mas, senhor deputado, essa marca temerária, sob as cinzas das estrelas há de um dia se apagar, como dizia o grande poeta Joaquim Cardozo”.

Visto de agora, dir-se-ia que os destinos foram trocados. Em 20 de janeiro de 1971, Rubens Paiva foi sequestrado de sua residência no Rio de Janeiro, conduzido para o quartel da 3ª. Zonal Aérea e encaminhado para o DOI-CODI do I Exército, onde foi torturado e executado.