“Acho que o exercício da solidariedade, quando se pratica de verdade, no dia a dia, é também um exercício de humildade que ensina você a se reconhecer nos outros e reconhecer a grandeza escondida nas coisas pequenininhas, o que implica denunciar a falsa grandeza nas coisas grandinhas em um mundo que confunde grandeza com grandinho. “Lendo os seus livros, sinto que você tem um olho no microscópio e outro olho no telescópio” e achei uma boa definição das minhas intenções, do que eu gostaria de fazer escrevendo: ser capaz de olhar o que não se olha, mas que merece ser olhado. As pequenas, as minúsculas coisas da gente anônima, da gente que os intelectuais costumam desprezar, esse micro-mundo onde eu acredito que se alimenta de verdade a grandeza do universo. E ao mesmo tempo ser capaz de contemplar o universo através do buraco da fechadura, ou seja, a partir das coisas pequenas ser capaz de olhar as grandes, os grandes mistérios da vida, o mistério da dor humana, mas também o mistério da persistência humana nesta mania, às vezes inexplicável, de lutar por um mundo que seja a casa de todos e não a casa de pouquinhos e o inferno da maioria e outras coisas mais. A capacidade da beleza, a capacidade de formosura da gente mais simples, às vezes da gente mais singela que tem uma insólita capacidade de formosura que, às vezes, se manifesta em uma canção, em um grafite, em uma conversa qualquer. A que as crianças têm… o que acontece é que depois nós, adultos, ocupamos em transformá-las em nós mesmos, e aí destruímos a vida delas. Mas temos que ver o que é uma criança, não? São todas pagãs… Faz pouco tempo eu sofri uma tragédia, morreu meu companheiro Morgan, meu cachorro, meu companheiro de passeio, que me acompanhava também escrevendo porque, quando eu perdia a mão, e já levava 18 horas escrevendo, com a sua perna me dizia: “Vamos, nos vamos. A vida não termina aqui, nos livros. Vem, vamos passear juntos”, e aí íamos os dois. E ele morreu assim que eu andava com uma música muito ruim na alma e, realmente, falando de perdas, a perda do Morgan foi muito importante para mim, me arrancou um pedaço do peito. E, bem, estava assim, muito triste e saí a caminhar aqui, pelo bairro, e era cedo, de manhãzinha. Não conseguia dormir, me vesti, fui caminhar e cruzei com uma menina muito nova, devia ter uns dois anos, não mais que dois, que vinha brincando na direção oposta e ela vinha cumprimentando a grama, a graminha, as plantinhas. “Bom dia, graminha!”, dizia: “bom dia, graminha!”. Ou seja, nessa idade somos todos pagãos e nessa idade somos todos poetas. Depois o mundo se ocupa de apequenar nossa alma. Isso que chamamos ‘crescimento’, ‘desenvolvimento’…
“Me solto do abraço, saio na rua. No céu, já clareando, se desenha, finita, a lua. A lua tem duas noites de idade. Eu, uma”.”
– Eduardo Galeano em “entrevista” ao Programa Sangue Latino, do Canal Brasil, gravado em 2009.
Eis, a breve crônica:
O Universo visto pelo buraco da fechadura – por Eduardo Galeano
Na sala de aula, Elsa e Ale sentavam juntas. Nos recreios caminhavam de mãos
dadas pelo pátio. Dividiam os deveres e os segredos, as travessuras.
Um dia, de manhã, Elsa disse que tinha falado com a avó morta.
Desde então a avó começou a mandar mensagens para as duas. Cada vez que
Elsa afundava a cabeça na água escutava a voz da avó.
Um dia Elsa anunciou:
– Vovó diz que vamos voar.
Tentaram no pátio da escola e na rua. Corriam em círculos e em linha reta até
caírem exaustas. Se arrebentaram umas quantas vezes saltando dos muros.
Elsa afundou a cabeça e a avó disse:
– No verão vocês voam.
Chegaram as férias. As famílias viajaram para praias diferentes.
No fim de fevereiro Elsa voltava com seus pais a Buenos Aires. Pediu que
parassem o carro na frente de uma casa que nunca tinham visto.
Ale abriu a porta.
– Voou? – perguntou Elsa.
– Não – disse Ale.
– Nem eu – disse Elsa.
Se abraçaram chorando.
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— Eduardo Galeano, no livro “Dias e noites de amor e de guerra”. tradução Eric Nepomuceno. Porto Alegre: L&PM, 2001.