- Disco tem participação de nomes como Caetano, Zeca Pagodinho, Maria Luiza Jobim, Ivete Sangalo e Chico Buarque
Adriana assume o leme:
— Dé foi o que pensou melhor a voz de cada pessoa para cada música. Ele começou com a Ivete em “A galinha-d’angola” (com o grupo português Buraka Som Sistema e seu kuduro, ritmo d’Angola como o animal). Depois veio Zeca (que dá síncope ao caminhar do pato jogando-o do compasso ternário original para o binário do samba), foram escolhas muito acertadas. Eu sugeri o Chico cantando “O pinguim”, pensando nesse humor cara de pau que é necessário para cantar Vinicius e que ele é quem mais tem, logo abaixo do próprio Vinicius.
A observação de Adriana sobre o samba amaxixado que “O pinguim” se tornou, à la velha malandragem, leva a conversa para um aspecto central da obra de Vinicius, a malícia presente mesmo na sua produção para crianças.
— Sempre tem uma sacanagenzinha por trás, por mais que pareça uma coisa boa e direta tem uma maldade por trás — define Susana.
Dé complementa:
— As letras são cruéis. Todos os bichos vão parar na panela, morrem.
Adriana nota que a crueldade não é gratuita:
— Todos os poemas (originalmente, as canções eram poemas) têm essa coisa do ciclo, do predador, da presa, da sobrevivência. Ele está o tempo todo lidando com isso, não está fazendo animais da Disney. Está falando da vida como ela é.
Adriana, porém, quis poupar um animal da vida como ela é e vetou a regravação de “O porquinho” (“Ela gosta de porquinho”, explica Susana). Cantada originalmente por Grande Otelo, a música soa como um divertidíssimo jingle de açougue, com versos em primeira pessoa como “Do rabo ao focinho/ Sou todo toicinho/ Bota malagueta/ Em minha costeleta/ Numa gordurinha”.
— Era demais. Porco não — diz Adriana, quase séria.
CD traz inédita “O elefantinho”
“A arca de Noé” traz a regravação de quase todos os temas de animais dos álbuns originais — que tinham ainda outras, como “A porta” e “O relógio”. E inclui também “São Francisco” (com Miúcha e Paulo Jobim) e “A casa” (na voz de Vinicius e no violão de Toquinho), além de duas que não estavam nos discos dos anos 1980 (ambas a partir de poemas de Vinicius, claro): “As borboletas”, musicada por Cid Campos e já gravada no segundo CD de Adriana Partimpim; e “O elefantinho”, com melodia de Partimpim, inédita.
— “As borboletas”, a Partimpim roubou da “Arca”, ela foi feita para esse disco. Porque o projeto da “Arca” vem sendo pensado há uns cinco anos — lembra Adriana.
Leonardo Netto, responsável pela logística do projeto, explica a demora:
— Era um disco caro, muitas pessoas com agendas complicadas. Conseguimos porque todas queriam participar, tivemos antecedência para conciliar as agendas, e a Sony comprou a ideia no todo, exatamente como queríamos.
Dos convidados, acabaram não entrando apenas João Gilberto (que faria “São Francisco”, mas cancelou sua participação) e Gilberto Gil, pensado para gravar a inédita “O peixe-espada”, que não ficou pronta a tempo.
— Está com ele, pode ser que chegue e dê a partida a uma segunda “Arca” — diz Adriana.
A ordem do disco sugere uma narrativa quase mítica. Logo depois da abertura (com Bethânia, Seu Jorge e Péricles), a arca, tal qual a caravela de Cabral, desembarca na Bahia — Caetano e Moreno transformam “O leão” num pagode baiano. A Bahia passa o bastão ao samba carioca — como na história da baiana Tia Ciata servindo de mãe do gênero no Rio —, e Zeca aparece com “O pato”. A partir daí, a história segue cortando a música brasileira, indo da disco music anárquica da Orquestra Imperial (“A foca”) aos timbres andinos de Arnaldo Antunes (“O peru”), passando pelo sertão de Chitãozinho & Xororó (“A corujinha”).
— Nunca tinha prestado atenção neles, mas fomos a um prêmio, eles cantaram, e fiquei boba com a voz dos dois — lembra Susana, referindo-se a Chitãozinho & Xororó. — Eles me remeteram a essa coisa da fazenda, onde passei muito a adolescência. A melancolia do fim de tarde, quando as corujas começam a piar. Tem uma coisa profunda nessa hora, quando o sol se põe, e os bichos noturnos saem. E Chitãozinho & Xororó fizeram a canção lindamente.
Reunidos, Susana, Dé, Adriana e Leonardo recordam curiosidades das gravações.
— Maria Luiza Jobim grava a única música que é do Tom (seu pai) no disco. E a mãe dela participou da gravação original, tem esses links — diz Dé.
Adriana conta outra:
— Arnaldo gravou “O peru” em duas oitavas. Porque a música fala de um peru que pensa que é um pavão. Então o grave é o que o peru é realmente, e o agudo é o que ele pensa que é.
Dos detalhes de making of, Susana é a que vai mais fundo, no nascimento dos poemas:
— Minha relação com essa obra vem de aporrinhar meu pai. Eu e Pedro (irmão dela) perguntávamos: “O que você está escrevendo?”. Ele respondia: “Poesia”. “E o que é poesia?” Até que, para se livrar da gente, começou a fazer esses poemas de bichos — brinca Susana, que trabalha com Sérgio Machado e Walter Salles num filme de animação da “Arca”.
Apesar das 17 faixas, o disco não é longo, pois as canções são curtas. Por dois motivos, Adriana explica:
— Crianças acham que o tempo do mundo é o tempo do computador. E eu também sou a favor de disco curto, canção curta. Porque a vida é curta.
As faixas de ‘A arca de Noé’ (2013)
1. “A arca de Noé” – Maria Bethânia, Seu Jorge e Péricles (gravada anteriormente por Chico Buarque e Milton Nascimento)
2. “O leão” – Caetano Veloso e Moreno Veloso (gravada anteriormente por Fagner)
3. “O pato” – Zeca Pagodinho (gravada anteriormente por MPB-4)
4. “O peru” – Arnaldo Antunes (gravada anteriormente por Elba Ramalho)
5. “O gato” – Mart’nália (gravada anteriormente por Marina Lima)
6. “O pintinho” – Erasmo Carlos (gravada anteriormente pelas Frenéticas)
7. “A corujinha” – Chitãozinho & Xororó (gravada anteriormente por Elis Regina)
8. “As borboletas” – Gal Costa (não foi gravada nos volumes originais)
9. “A formiga” – Mariana de Moraes (gravada anteriormente por Clara Nunes)
10. “A galinha d’Angola” – Ivete Sangalo e Buraka Som Sistema (gravada anteriormente por Ney Matogrosso)
11. “O pinguim” – Chico Buarque (gravada anteriormente por Toquinho)
12. “A cachorrinha” – Maria Luiza Jobim (gravada anteriormente por Elas)
13. “O elefantinho” – Adriana Partimpim (inédita)
14. “As abelhas” – Marisa Monte (gravada anteriormente por Moraes Moreira)
15. “A Foca” – Orquestra Imperial (gravada anteriormente por Alceu Valença)
16. “São Francisco” – Miúcha e Paulo Jobim (gravada anteriormente por Ney Matogrosso)
17. “A casa” – Vinicius de Moraes (gravada anteriormente por Boca Livre)
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