É preciso amar o mundo e tentar salvá-lo
Por Flávio Chaves – Jornalista, poeta, escritor e membro da Academia Pernambucana de Letras. Foi Delegado Federal/Minc – As imagens de crianças morrendo de frio em Gaza chegam até nós como uma ferida aberta na carne da humanidade. Depois das bombas e da fome, o frio é mais um carrasco que ceifa vidas inocentes em um cenário onde o sangue já não assusta e a morte virou rotina. Mas o pior disso tudo é saber que, por trás desse massacre contínuo, há um argumento que insiste em se esconder sob o manto da religião. É a velha desculpa dos homens que, em nome de Deus, escolhem destruir aquilo que Ele criou: a vida.
O que se vê em Gaza hoje não é um conflito religioso, mas uma guerra de poder que instrumentaliza a fé para justificar o inominável. É a continuação das Cruzadas — não mais com espadas e armaduras, mas com drones e mísseis. E, como outrora, as principais vítimas são os indefesos, aqueles que não empunham armas, mas carregam nos braços a dor do mundo. Eles não lutam por territórios, mas lutam para sobreviver. Lutam contra a indiferença, contra o esquecimento, contra o frio que mata devagar e silenciosamente.
A humanidade, ao longo dos séculos, aprendeu a justificar sua sede de poder sob diferentes narrativas. Matou-se em nome de reis, de territórios, de bandeiras e, em um dos argumentos mais perversos, em nome de Deus. Mas é preciso perguntar: que Deus é esse que exige o sacrifício de crianças? Que fé é essa que não acolhe o outro, mas o extermina? Que humanidade é essa que assiste, de braços cruzados, à morte lenta de um povo?
Há um silêncio que grita mais alto do que qualquer explosão: o silêncio das nações que poderiam fazer algo, mas escolhem não fazer. Esse silêncio é cúmplice do genocídio. Ele perpetua o sofrimento e reforça a narrativa de que algumas vidas são mais valiosas do que outras. No entanto, quem decide o valor de uma vida? Em que tribunal se pesa o direito de uma criança à vida, à segurança, ao abraço quente de sua mãe? Como medir a dor de um pai que vê seu filho congelar entre os escombros sem poder fazer nada? O eco que povoa de tristeza é o grito das crianças que choram e sofrem.
As crianças de Gaza estão morrendo de frio. Essa frase deveria bastar para mobilizar o mundo. Mas o mundo está anestesiado. O mundo se preocupa com seus próprios interesses, com o mercado financeiro, com os embates políticos internos. Enquanto isso, um menino congela entre os escombros. Uma menina perde a esperança antes mesmo de aprender a sonhar.
O frio que mata em Gaza é também o frio que congelou os corações dos poderosos. Um frio que ignora a compaixão, a solidariedade e a empatia. Esse mesmo frio percorre as estruturas do mundo moderno, que prioriza o lucro em detrimento da vida, que olha para o sofrimento alheio como uma paisagem distante e inevitável.
A guerra em Gaza expõe um dilema profundo sobre a fé. Há dois tipos de fé: a fé que abraça e a fé que mata. A verdadeira fé não conhece fronteiras e não distingue etnias ou credos. Ela é um ato de amor ao próximo, ao semelhante, ao diferente. É a fé que acolhe, que alimenta, que aquece.
Mas há também a fé pervertida, manipulada por homens que têm sede de poder. Essa fé não é mais do que um instrumento de ódio, uma justificativa para o extermínio. E é essa fé que continua matando crianças em Gaza. A mesma fé que, em outros tempos, justificou a escravidão, a colonização e o apartheid. A mesma fé que permitiu genocídios e perseguições em nome de um Deus que, em sua essência, prega o amor e a compaixão.
Por isso, é urgente resgatar a essência do que significa acreditar em algo maior. É urgente lembrar que todas as religiões, em suas origens, pregam o amor, a compaixão e o respeito. Se Deus é amor, não há como aceitarmos a barbárie em Seu nome.
Amar o mundo, hoje, é um ato revolucionário. Em um tempo em que a indiferença é a regra, o amor é o ato de maior coragem. Em um tempo em que as fronteiras são erguidas para separar os povos, a solidariedade é o único caminho para derrubá-las. Se entregar e lutar por amor ao mundo é um o ato de maior coragem.
Amar é reconhecer no outro o mesmo valor que reconhecemos em nós mesmos. É compreender que, enquanto uma única criança estiver sofrendo, nenhum de nós estará realmente em paz. Amar é, acima de tudo, tentar salvar o mundo — não com armas ou discursos inflamados, mas com pequenos gestos que resgatam a dignidade humana.
A nossa humanidade está em jogo. A cada criança que morre de frio em Gaza, morremos um pouco também. É preciso reagir. É preciso gritar. É preciso lutar para que nenhuma criança, em nenhum canto do mundo, seja vítima do ódio, da fome ou do frio.
Porque o amor é a única arma capaz de vencer essa guerra. Amar o mundo é a única revolução que ainda vale a pena ser feita.