Plataformas de apostas transformam o Brasil no paraíso de golpistas da Ásia

Numa quarta-feira no fim de agosto, dezenas de policiais angolanos invadiram o hotel Sunshine, na cidade de Telatona, vizinha à capital Luanda. A megaoperação prendeu 46 chineses, que aliciaram mais de cem pessoas para operar, do estabelecimento, uma rede com mais de 400 plataformas de azar fraudulentas. A maioria das vítimas, no entanto, não estava na África ou na Ásia, mas sim do outro lado do Atlântico, no Brasil, o novo paraíso de golpistas internacionais. As conexões criminosas estendem-se ainda por países como Singapura e Mianmar, ambos no Sudeste Asiático, com um ponto em comum: o Jogo do Tigrinho.

Divulgada em profusão na internet, a prática virou febre entre brasileiros nos últimos anos, sobretudo desde a pandemia da Covid-19. Trata-se de uma espécie de máquina de caça-níquel virtual, onde o objetivo é, contando com a sorte, obter combinações que rendam prêmios.

Embora o Tigrinho, em si, não seja ilegal — ele pode, inclusive, ser operado por bets autorizadas a atuar no país — a natureza do jogo abre espaço para manipulações e golpes, como quando é programado para não bonificar apostadores ou impede a retirada de valores conquistados.

Na ação de agosto, o Serviço de Investigação Criminal (SIC) de Angola apreendeu 223 computadores e 113 celulares usados na criação de perfis falsos nas redes sociais. No esquema, 113 angolanos atuavam em turnos de 12 horas no call center pelo qual interagiam com os clientes brasileiros, seduzidos pela ilusão de ganho fácil. A estrutura também era usada para captar dados bancários e pessoais das vítimas.

— É uma estrutura financeira complexa, com transferências de valores do Brasil para vários pontos do mundo, e desses pontos para Angola. Em euros ou dólares, esse dinheiro era depois convertido em kwanzas (moeda local) para realimentar a rede criminosa — descreve Manuel Halaiwa, porta-voz do SIC.

Falsa concorrência

O GLOBO identificou nove plataformas clandestinas operadas a partir do hotel Sunshine. No Instagram e no Telegram, principais meios de divulgação desses sites, elas anunciam suas atividades como se fossem concorrentes, mas eram tocadas do mesmo endereço, quando não do mesmo computador. Todas têm como principal atração o Jogo do Tigrinho e as variantes que incluem outros animais do horóscopo chinês, como coelho, rato, porco, touro e dragão.

Quatro meses após as prisões, as plataformas YYDBet, DTBet, Globaljogo, Mundojogo, LLLBet, Rei KF, EeeBet, KF-Topo e PPPJogo seguem no ar, angariando apostadores brasileiros. Nenhuma delas consta na lista do Ministério da Fazenda, divulgada neste segundo semestre, de páginas autorizadas a operar no país.

Em outubro, uma nova operação da polícia angolana desmantelou outro esquema similar. No hotel Diamond Black, também em Talatona, um ugandês e oito chineses, com idades entre 19 e 36 anos, foram presos por montarem uma central de golpes com foco no Brasil. Uma oficina mecânica servia de fachada para os criminosos.

Uma das atividades ilegais do grupo era a divulgação do cassino on-line LNBet, que tem o Jogo do Tigrinho como principal atração. Cada operador angolano recebia diariamente 700 números de celulares brasileiros. Mediante a promessa de bônus em dinheiro, eles convenciam as vítimas a apostar na plataforma. Assim como no primeiro caso, os sites permanecem a pleno vapor, bem como os grupos que os divulgavam nas redes, com novos lançamentos.

— As estruturas dessas organizações criminosas não são piramidais, com um líder máximo no vértice superior. São redes neurais espalhadas pelo mundo — explica, de modo geral, o delegado Felipe Leal, da Divisão Nacional de Repressão à Lavagem de Dinheiro e Recuperação de Ativos da Polícia Federal (PF).

‘Realizando sonhos’

A investigação em Angola mostrou que influenciadores do Brasil são aliciados para divulgar os sites fraudulentos. Eles são recompensados com comissões que variam a depender dos depósitos feitos por novos apostadores.

Uma dessas personagens é Wendy Pereira, que, em outubro de 2023, compartilhou no Instagram um vídeo da festa de lançamento da DTBet. Na gravação, Wendy aparece ao lado de outras jovens em uma van rumo a um restaurante luxuoso em Barra de São Miguel (AL). As imagens de passeios de barco, quadriciclo e champanhe estourando são intercaladas com a de apostas supostamente bem-sucedidas no Tigrinho.

Em novembro do mesmo ano, o influenciador Igor Aventureiro publicou um vídeo no qual caminha em uma praia paradisíaca até parar diante de um “X” marcado na areia, onde se lê o nome da plataforma chinesa YYDBet. Igor aparece cavando com as mãos até encontrar várias notas de R$ 100 e R$ 50. “YYBet realizando sonhos”, escreveu. As prisões em Angola, associadas aos dois sites, não acanharam a dupla, que não cessou as divulgações. Eles não responderam ao contato do GLOBO.

Nos últimos dois anos houve aumento de ações policiais no Brasil mirando responsáveis por divulgar o Tigrinho. É comum que investigados de diferentes estados relatem que, por trás dos sites, estavam cidadãos chineses, que tratam como “chefes”. Os influenciadores, contudo, demonstram pouco conhecimento dos meandros do esquema e sequer sabem os nomes dos supostos patrões, como frisam investigadores ouvidos pelo GLOBO.

A apuração que mais chegou perto de entender a operação foi conduzida pela Polícia Civil do Distrito Federal e levou ao indiciamento da ex-BBB Adélia Soares por falsidade ideológica e associação criminosa. Advogada da influenciadora Deolane Bezerra, ela foi apontada como a responsável por abrir de forma irregular uma empresa para chineses operarem jogos ilegais no país.

Registrada em Suzano (SP), a Playflow era uma processadora de pagamentos que recebia os valores das apostas feitas nas plataformas. O dinheiro seguia para outras intermediadoras até sair do país para Curaçao, paraíso fiscal no Caribe, via transações com CPFs de pessoas mortas. Procurada, Adélia não retornou, mas alegou atuar “dentro da legalidade” quando o caso veio à tona.

— Como essas empresas não precisam de autorização do Banco Central, estão fora de várias normativas, e o fluxo financeiro fica fora de controle — diz o delegado Erick Sallum, responsável pela investigação. — É uma instituição de pagamento dentro da outra, como uma boneca russa.

‘Não paga, não é confiável’

No caso do esquema de Angola, as plataformas eram divulgadas nas redes por um perfil chamado Grupo KF. A partir de setembro, conforme o cerco do Ministério da Fazenda se apertou com novas exigências para o funcionamento das casas de apostas, a quadrilha adotou uma estratégia que se tornou frequente no meio. Para se legitimar perante o público brasileiro e entre os influenciadores que viram garotos-propaganda de suas atividades, anunciaram ter uma empresa no país, a Golden Pig Tecnologia, aberta em 30 de setembro.

Duas semanas depois, o Grupo KF passou a afirmar ter obtido autorização para atuar na promoção de jogos de azar junto à Loteria do Estado do Rio de Janeiro (Loterj), informação rechaçada pelo órgão.

O pedido realmente foi feito, mas, como os documentos solicitados não foram apresentados no prazo, acabou encerrado. Apesar disso, as plataformas do grupo ainda exibem o falso aval em suas páginas. Em novembro, uma nova solicitação foi apresentada ao Ministério da Fazenda, que ainda não concedeu a outorga.

O funcionamento das páginas do Grupo KF e de outras semelhantes, entretanto, é incompatível com as normas para o setor anunciadas pela pasta em julho. As regras estabelecem que as empresas devem usar o domínio bet.br e ter um número máximo de três sites ativos. Nada disso acontece com as bets chinesas, que lançam novas plataformas sediadas no exterior toda semana.

Outra suspeita das autoridades é que empresas como a Golden Pig, hoje responsável pelas plataformas chinesas alvo da operação em Angola, sejam abertas por laranjas no Brasil para dar ares de legitimidade a práticas fraudulentas. Sediada em São Paulo, a Golden Pig está em nome de Leonardo Jackson Vieira de Carlos, de 19 anos, residente em um endereço no Capão Redondo, na periferia paulistana. Procurado, ele não retornou aos pedidos da reportagem.

— Esses criminosos (donos das bets chinesas) precisam de um meio de pagamento no Brasil. Eles baniram o cartão de crédito e usam o Pix, que tem uma velocidade mais rápida, e o dinheiro é movimentado através de intermediadoras. Algumas são criadas só para isso, em nome de laranjas — diz Fernando Ferreira, investigador do Departamento Estadual de Investigações Criminais (Deic) da Polícia Civil de São Paulo. — O influenciador é a cereja do bolo. Queremos saber para onde vai o dinheiro.

No curto período de atividade, a Golden Pig já coleciona denúncias na internet e processos na Justiça. No site Reclame Aqui, eram 86 queixas no início de dezembro: “Não paga, não é confiável”, anuncia uma delas, seguida de outras em tom similar. Há relatos de até R$ 20 mil retidos nas plataformas da empresa.

A advogada Tabata Miquelleti defende um dos lesados pela Golden Pig. No processo na Justiça de São Paulo, a companhia aparece como intermediadora de pagamentos a uma bet que bloqueou R$ 60 mil de uma apostadora:

— Esses grupos criam várias intermediadoras para colocar nesses sites fraudulentos. A pessoa aposta, ganha R$ 100 ou R$ 20 mil, e não consegue sacar — resume a advogada.

O site da Golden Pig é idêntico ao de outra companhia, a Starpago, compartilhando número de contato, perfil no Facebook e design da página. Procurados no Telegram e por um telefone de Hong Kong, representantes da Starpago negaram ligação com a empresa brasileira, que teria copiado seu conteúdo à revelia.

Tanto a Starpago quanto a Golden Pig dizem ter elo com a Star Brilliant Holding, das Ilhas Cayman, registrada no Brasil como uma Empresa Domiciliada no Exterior. Nos dados da Receita Federal, consta o e-mail de Ricardo Anzolin, CEO da Voluti Pagamentos.

“No caso específico da Golden Pig, esta foi nossa cliente, mas, devido à ausência da autorização necessária, os serviços foram bloqueados”, diz a Voluti, acrescentando ter sido “indevidamente” citada pela Star Brilliant, tendo solicitado a retirada de seu e-mail do registro.

Elo com tráfico de drogas

Operar jogos de azar é uma prática ilegal na China, com exceções dos casos promovidos pelo Estado ou autorizados em zonas específicas, como Macau e Hong Kong. Cidadãos chineses são, inclusive, proibidos de apostar até mesmo fora do país.

Nos sites clandestinos, acessados por meio de VPN, os apostadores do país asiático sofrem com problemas semelhantes aos dos brasileiros, vendo-se impedidos de sacar valores ou perdendo acesso ao próprio dinheiro. O golpe, muitas vezes, está ligado a outras práticas ilícitas, como o tráfico de drogas.

“Grupos criminosos transnacionais realizam frequentemente grandes operações de apostas ilegais, abrangendo várias jurisdições. Elas são uma importante fonte de financiamento para as outras linhas de negócio, como a produção e distribuição de drogas”, disse, em nota, o conselho da Federação Internacional de Autoridades de Corridas de Cavalos (IFHA), grupo que reúne entidades legalizadas do setor de apostas e que atua no combate ao mercado clandestino.

Especialistas no mercado asiático apontam que o aumento da repressão a esse tipo de prática na região impulsionou criminosos a buscarem novas vítimas no Brasil. Segundo a IFHA, o crescimento do mercado brasileiro de apostas nos últimos anos, somada à falta de regulação que só agora vem sendo contornada, também contribuiu para atrair golpistas:

— Como a China está sempre em cima deles, vivem procurando novos mercados — resume Ben Lee, da consultoria IGamix, de Macau, especializada no mercado asiático de jogos de azar.

Fortuna em Mianmar

Os cassinos on-line ganharam impulso durante a pandemia de Covid-19 e se espalharam pelo Sudeste Asiático, segundo um relatório do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime publicado no início de 2024.

As bases dessas operações são montadas em países como Mianmar, onde a fragilidade do governo central criou um ambiente favorável ao estabelecimento de diferentes grupos criminosos, muitos voltados para cibercrimes. Laos e Camboja também estão na lista.

Foi em Mianmar que o chinês de nacionalidade cambojana Su Baolin, de 42 anos, construiu sua fortuna. Uma investigação da polícia de Singapura mostrou que, só entre 2020 e 2021, ele obteve cerca de R$ 10 milhões de sites de jogos de azar operados a partir do país. As plataformas de Baolin miravam usuários na China e no Brasil, e o dinheiro chegava até ele na forma de criptomoedas.

Baolin fazia parte de uma rede de chineses baseada em Singapura que usava o sistema bancário local para lavar dinheiro de jogos de azar ilegais e de outros golpes digitais. Em agosto de 2023, o grupo se tornou alvo de uma das maiores operações policiais da história do país.

Na mansão de Su Baolin, que oficialmente era diretor de uma empresa de ares-condicionados, a polícia local apreendeu 33 bolsas e relógios de luxo, 75 joias e o equivalente a mais de R$ 4,5 milhões em dinheiro vivo. Ao todo, a ação resultou no bloqueio de cerca de R$ 16 bilhões em bens.

Entenda o jogo

. Origem em Malta: O Jogo do Tigrinho, cujo nome original é Fortune Tiger, foi desenvolvido pela empresa Pocket Games Software, de Malta. Ele por si só não é ilegal e pode ser operado por bets autorizadas no Brasil

. Caça-níquel digital: Posteriormente, o modelo foi sendo copiado por incontáveis plataformas pelo mundo. Funciona como uma máquina de caçaníquel, onde o objetivo é conseguir imagens iguais para ser premiado

. Espaço para manipulações: Como em qualquer jogo de azar, há espaço para manipulações, como quando a plataforma é programada para não premiar apostadores ou impede saquesde valores conquistados.

Do jornal O Globo.