Era uma vez uma andorinha que ficou para trás durante a migração anual por conta de um amor que não deu certo. Ela encontrou a estátua do príncipe feliz, coberta de ouro, com olhos de safira e um grande rubi enfeitando sua espada. A estátua encerrava a alma de um príncipe taciturno e um coração de chumbo. Aos poucos, andorinha e estátua tornam-se amigos. A ave transforma-se em mensageira do bom príncipe, e doa suas riquezas aos pobres. No fim, temos um coração quebrado e uma andorinha congelada, os itens mais preciosos desta cidade pacata. Poderia ser dos irmãos Grimm, mas é Oscar Wilde. E isso faz toda a diferença.
O príncipe feliz foi publicado em 1888, mas já possui a essência do Oscar Wilde que mais tarde nos legaria ‘O retrato de Dorian Gray’. É um conto com múltiplas facetas, preocupado com a beleza da linguagem, sutil mas feroz em suas críticas, e com um olhar particularmente aguçado sobre a natureza humana. A começar pela andorinha. A ave que inicia o conto é uma vítima do belo por ele mesmo, da maneira mais superficial possível. Apaixona-se por um junco, um belo junco, que não fala, apenas se movimenta de acordo com o vento. Mas é um junco muito bonito. Seus amigos, tão ou mais superficiais, taxam a relação de ridícula. Não por ser impossível, mas porque a amada não possui dinheiro, e ainda por cima vem de uma família muito grande. Vale lembrar que até o nome do animal escolhido remete a essa característica. No original, andorinha vira Swallow, palavra cuja grafia é bastante próxima de Shallow (superficial).
Após a migração dos pássaros, a andorinha perde todo o interesse no amado junco. Ela é terrivelmente calada, ligada à terra e ainda por cima está dando em cima do bendito vento. A andorinha deixa então a relação que ela mesma criou e parte em busca dos amigos, em rota migratória para o Egito. No caminho, passa pela cidade do Príncipe Feliz, representado por uma magnífica estátua, folheada a ouro e com gemas preciosas no lugar dos olhos e do botão da espada. O monumento foi erigido pelos governantes da cidade, e serve de símbolo de conduta para seu povo. A mensagem é bastante clara. Seja rico e belo, e serás feliz. Ou assim parece. Pois dentro da bela estátua encontra-se a alma do falecido príncipe, não tão feliz assim.
Não que ele achasse isso em vida. Protegido da miséria por muros altos, sem interesse de desbravar além daquele limite, o príncipe sentia-se agradado. Ali fazia tudo que lhe dava prazer. Por isso julgava-se realmente feliz. O castelo em que vivia era uma espécie de casulo, do tipo que até hoje colocamos em prática, com nossas grades, porteiros, alarmes e etc. Nos aprisionamos voluntariamente para podermos negar a miséria do próximo. Mas a estátua foi posta num pedestal alto demais, e o príncipe não pode mais negar o que acontecia em sua cidade. Mas estava preso neste pedestal, nada podendo fazer.
A decisão da andorinha de dormir junto à estátua foi tomada por um motivo estético: “dormirei em uma cama de ouro”, diz antes da primeira lágrima cair. Na presença de algo belo e triste, comove-se. Quando descobre que a estátua não é maciça, surpreende-se. Sente uma certa repulsa por o monumento não ser “puro”. Mas o príncipe, desligado das vaidades da vida, resolve se desfazer das vaidades de seu corpo de metal. Com a ajuda da andorinha, descobre uma nova liberdade. Aos poucos vai despindo-se de suas riquezas e doando-as aos necessitados porque “os vivos sempre acham que o ouro pode fazê-los felizes”.
As viagens que a andorinha faz para entregar os objetos preciosos aos necessitados mostram os dois lados da cidade. Os abastados desfrutando de sua abundância – enquanto os pobres estão em sua porta. Aos poucos, a andorinha aprende a ver pelo ponto de vista da estátua e decide não abandoná-la. Mas força de vontade não é o suficiente para mudar quem ela é, e seu fim é trágico. A estátua, destituída de seus enfeites e finalmente exibida em sua essência, perde o encantamento que a fez ser erigida, e é derretida para aplacar o ego dos governantes. Mesmo a última cena, do encontro dos itens preciosos – coração de chumbo e andorinha – com Deus, podem ser interpretados com cinismo, já que a função do príncipe no céu será adorar o seu Deus.
E esta foi apenas a última das leituras que fiz desse conto. E essa é apenas uma das interpretações possíveis. A história pode passar por um conto de fadas simples, pregando o amor ao próximo, tendo como recompensa seu lugar no céu, e podemos discuti-lo sob diversos ângulos e pontos de vista diferentes. O príncipe feliz é um Conto Essencial em vários sentidos. Foi escrito por um ícone da literatura britânica em um de seus séculos mais férteis, e capta a sua essência, é escrito com precisão, molda-se ao leitor, engana em sua simplicidade. É um conto que muda de faceta a cada nova leitura, que mantém-se atual após mais de 120 anos de publicação. É essencial porque fala da natureza humana e de suas máscaras mais primordiais. São aquelas poucas páginas que mudam sua perspectiva, sua maneira de pensar.
Fonte: blog Meia Palavra