Por Mario Sergio Conti
Folha
O romance “Juventude sem Deus” é estranho. Foi escrito em alemão, mas publicado em Amsterdã, em 1938. Fez enorme sucesso na Europa e os nazistas o proibiram. Esquecido no pós-Guerra, voltou à tona nos anos 1950. É considerado hoje uma obra básica do modernismo germânico.
Seu autor é Ödön von Horváth. Só agora, 86 anos depois de lançado, o romance chega ao Brasil, na tradução de Sergio Tellaroli (Todavia, 173 págs.). A demora é tão mais estranha porque o livro foi festejado por Thomas Mann, Hermann Hesse, Joseph Roth e Natalia Ginzburg.
NO CALOR DA HORA – As esquisitices de “Juventude sem Deus” estão sobretudo no andamento e no tom da narrativa. Os curtos capítulos falam de várias coisas ao mesmo tempo. Embora fale de assuntos sérios, eles são relatados com bom humor. Ele debocha do nazismo no calor da hora.
O livro tem os atributos de um romance policial. Há um crime misterioso, suspense, um julgamento com provas mirabolantes. Mas é também uma crônica da crise da alemã do final dos anos 1930. Até Hitler aparece: é aclamado e chamado de “plebeu supremo” no seu aniversário.
Os temas de fundo são pesados: o racismo; a militarização da coletividade; a sabujice dos altos funcionários frente ao autoritarismo, com o fito de preservarem os empregos; a manipulação de adolescentes; o conformismo da classe média diante da ordem autoritária; o fechamento de empresas e a pauperização de trabalhadores; o trabalho infantil.
ZOMBARIA – A gravidade do contexto, contudo, não se coaduna com a leveza jovial do relato. Em vez de denúncias graves, predomina a zombaria —às vezes engraçada e, noutras ocasiões, pretensamente superior e afetada. Com isso, um cinismo irônico perpassa “Juventude sem Deus”.
As ambiguidades se centram no protagonista, um professor do curso secundário de 34 anos. Na cena inicial, ele corrige redações cujo assunto, prescrito por instâncias superiores, é uma pergunta: “Por que precisamos de colônias?”. A arguição embute a adesão ao expansionismo do Reich, que os jovens são instados a argumentar em seu favor.
Um estudante usa um argumento torpe para justificar a colonização da África: “Todos os negros são traiçoeiros, covardes e vagabundos”. O professor se escandaliza com a virulência da frase, mas, acomodatício, não a reprova por escrito; prefere se ater aos erros gramaticais: “a palavra ‘colônia’ tem circunflexo”.
COMENTÁRIO – Ao devolver os cadernos, o professor faz um comentário brando. Diz ao adolescente que “é possível que seja correto” sustentar que os brancos são superiores aos negros, mas registra que “os negros também são seres humanos”. Afinal, é o que diz a Bíblia. Para que foi dizer isso?
É vilipendiado pelo pai do menino, um padeiro, que o confronta para reclamar do comentário impertinente. A classe inteira, que ele achava cordata, assina um manifesto defendendo que deixe de lecionar. O diretor da escola o chama para uma reunião. O caso é grave.
O diretor concorda com o professor. No entanto, recomenda o silêncio e a inação. Seu motivo é bem concreto: não criar marola e, daqui a um tempo, atingir o limite de idade e receber a aposentadoria integral. É uma razão para a passividade que, desconfia-se, perdura até hoje.
MUNDO PLEBEU – O diretor tem outro argumento, agora de ordem geral e histórica: “Vivemos num mundo plebeu”, diz. A referência, explícita, é à Roma Antiga, à do 287 a.C., quando os patrícios perderam o poder para os plebeus. Logo, a elite intelectual deve aceitar os valores do populacho
O professor discorda: “Somos governados não por pobres plebeus, e sim única e exclusivamente pelo dinheiro”. Ödön von Horváth não era particularmente politizado. Mas, como no diálogo do diretor com o professor, ele expõe o ambiente moral da crise alemã dos anos 1930.
Majoritariamente, os personagens de “Juventude sem Deus” são da classe média –uns mal-informados, alguns filistinos e os que estão bem conscientes do que se passa. Há inteligência neste último grupo, mas ela é usada para fabricar desculpas e justificar a ausência de ações práticas. É o que faz o professor.
MORTE NA RUA – Também o escritor Horváth acabou de forma estranha. Aos 38 anos, era um dramaturgo inventivo e de sucesso; parecia fadado a criar grandes obras. Perseguido pelo nazismo, teve de se exilar e se estabeleceu em Paris.
Foi assistir a “Branca de Neve e os Sete Anões”, de Walt Disney, num cinema dos Champs-Élysées. Chovia quando saiu. Um raio atingiu uma árvore e um galho acertou a cabeça do autor de “Juventude sem Deus”.
Morreu na hora.