E Deus criou Brigitte Bardot… há 90 anos

Afastada da vida pública, mas ainda dona e senhora da causa animal, a atriz torna-se hoje nonagenária. À imprensa diz que virou a página do cinema, embora se orgulhe dessa época, e vive a velhice entre a naturalidade e o desapontamento político.

Com a aproximação deste dia 28 de setembro, a Agence France-Presse decidiu tentar, e conseguiu chegar à fala com Brigitte Bardot (n. 1934), perguntando-lhe o que mais desejava como presente de aniversário. Resposta: “O mais belo presente que poderia receber, ao fim de 50 anos de súplicas a governos e diferentes presidentes, seria a abolição do consumo de carne de cavalo”. Assim se dirige ao mundo a mulher que não se importa com a idade – “Nem a vi chegar!” -, reconhecendo apenas, num comentário meio superficial, que preferia ter 20 anos. Justamente a idade em que o termo sex symbol se lhe colou à imagem, quando ainda faltava vocabulário para explicar o que raio acontecia no instante em que uma câmara apanhava aquele rosto enquadrado por uma divina cabeleira loura, e se perdia na observação de quantos fragmentos de pele estivessem à vista.

Foi, de resto, nesses preparos (isto é, com abundantes fragmentos de pele à vista) que a estrela francesa se deu a conhecer a vastas audiências, depois de mais de uma dezena de comédias e dramas históricos sem chama… O filme, E Deus Criou a Mulher (1956), realizado pelo seu marido à época, Roger Vadim, começa com Bardot deitada atrás de um lençol pendurado no estendal, sem uma única peça de roupa a pesar-lhe sobre o corpo. Digamos, um simples prenúncio de que o final teria de ser uma manifestação enérgica dessa serena e sugestiva nudez. Como termina então? Ela dança, dança, dança (ou samba?), de saia aberta, com uma febre tribal que a faz subir mesas e sacudir o cabelo, rodeada pelos músicos negros, enquanto o jovem marido (Jean-Louis Trintignant), à beira do colapso, lhe roga que pare.

E a verdade é que ninguém a fez parar de dançar, a não ser ela própria, quando largou o cinema em 1973 (não tinha ainda 40 anos), cumprindo uma vontade que já sentia, a espaços, desde o início da década de 60, quando a pressão mediática se tornou demasiado violenta – o filme Vida Privada (1962), de Louis Malle, retratou esse assédio público como nenhum outro.

Simplesmente mulher

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A dança de E Deus Criou a Mulher (1956).

Era difícil explicar o efeito Brigitte Bardot. E, no entanto, as palavras do ilustre crítico Jean Douchet (no catálogo “Nouvelle Vague”, da Cinemateca Portuguesa) evidenciam-se certeiras, ao comparar a força emanada por E Deus Criou a Mulher com a obra-prima Lola Montès (1955), de Max Ophüls, que surgiu apenas uns meses antes do filme de Vadim: “E de repente o charme de Martine Carol [a atriz de Lola Montès] adquire um perfume envelhecido de avó. Um corpo selvagem, animal, livre, explode no ecrã. Sabota e revoluciona os costumes sociais em França e no mundo. BB – designação doravante universalmente conhecida desta bomba (sexual, forçosamente sexual) – vale por ela própria uma nova vaga. Ou um vagalhão.”

Pois bem, estava destinada a passar pelas mãos do grande nome da Nova Vaga, Jean-Luc Godard, não menos responsável pela construção da mitologia BB, através do maravilhoso O Desprezo (1963); mas antes ainda teve o seu momento de tribunal, em A Verdade (1960), de Henri-Georges Clouzot, onde um caso de homicídio e tentativa de suicídio justificam o escrutínio dramático da jovem mulher. Um filme em que os flashbacks dão conta da inquietude mágica daquele corpo, que abana as nádegas debaixo dos lençóis, fazendo mil correspondências… Por exemplo, vem à memória o mote que se ouve em E Deus Criou a Mulher: “O seu traseiro é uma canção”.

Hoje em dia, obviamente, esta frase pode ter interpretações tóxicas. Mas com certeza Bardot não se rala como elas, ou não tivesse sido uma das vozes femininas, entres as veteranas francesas, a levantar-se contra os excessos ideológicos do #MeToo. Afinal, estamos a falar da atriz que talvez mais vezes se deixou filmar de coxa nua, e cujos pezinhos de lã, com as pernas igualmente nuas, fixaram uma pose viciante: lá ia ela da cama até à janela em bicos de pés, a dançar o que quer que o éter lhe trouxesse, com a juba loura, solta ou apanhada, a organizar a silhueta no seu movimento ágil de tornozelos.

É nessa postura leve, onde se vislumbram as origens burguesas de Brigitte Anne-Marie Bardot, e os seus anos de ballet, que pulsa um novo erotismo. Ou, dito de outra maneira: logo nos anos 50, BB foi um fenómeno sociocultural, uma atitude feminina moderna e um presságio da revolução sexual da década seguinte. Inspirou uma tese feminista de Simone de Beauvoir, cantou e continuou a dançar sempre, sem ambições hollywoodescas: preferiu manter-se europeia, símbolo de um certo imaginário francês, que permitia a equivalência com Marilyn Monroe na América.

Agora, sem mostras de grande nostalgia, mas com um manifesto carinho por esses tempos, Bardot vive para a defesa dos animais, através da fundação que criou em 1986 e de um discurso que a acompanhará no resto dos seus dias: “Fujo da humanidade e tenho uma solidão que me serve muito bem”.