Carlos Alberto Sardenberg
O Globo
Do ministro Flávio Dino, do STF: “Eu nunca vi na História dos povos alguém parar uma guerra por teto fiscal”. Mas a História já viu muitos países perderem a guerra por causa do teto fiscal, pela falta de dinheiro. Mal comparando, é disto que se trata no caso brasileiro: da falta de dinheiro para investimento e custeio das ações voltadas às questões climáticas.
O ministro sacou a frase de efeito ao justificar a liberação de R$ 513 milhões para o governo federal gastar no combate aos incêndios. O dinheiro entrou na rubrica de crédito extraordinário. Portanto, não será contado no Orçamento como gasto primário, que exigiria a definição de uma receita equivalente.
ESCONDENDO – Em resumo: no fim do ano, quando fizer a conta de receitas menos despesas, para verificar se a meta de déficit zero foi cumprida, o governo deixa de lado aqueles R$ 513 milhões. Sim, é isto mesmo que você está pensando: o governo gastará, mas isso não entra como gasto na contabilidade oficial.
Mas como o dinheiro será efetivamente pago, surgem duas questões. Primeira: de onde vem? Segunda: é suficiente? A primeira resposta é fácil. Como você faz quando gasta um dinheiro que não entrou como receita? Entra no cheque especial ou no rotativo do cartão de crédito. Faz dívida, portanto. O mesmo com o governo. Se gasta além da receita, mesmo sem colocar na meta fiscal, tem de tomar dinheiro emprestado para cobrir aquela despesa. E faz isso vendendo títulos da dívida — aqueles que a gente compra no Tesouro Direto — pagando juros elevados.
Pode chamar de contabilidade criativa. No oficial, o governo poderá dizer que cumpriu a meta de déficit zero. No paralelo, terminará o ano com endividamento maior. O que nos leva à resposta da segunda questão: aquele crédito de R$ 513 milhões é pouco dinheiro, considerando o atraso nas medidas emergenciais e estruturais para lidar com a questão climática. Como admitiu o próprio Lula, o país não está preparado para essa emergência climática. Faltaram recursos.
GASTANÇA – Reparem nestes números: de janeiro a julho deste ano, a despesa total da União foi de R$ 1,325 trilhão. Não, não está errado. A conta é mesmo de trilhão. Se é assim, por que precisou um ministro do Supremo liberar um crédito extraordinário de mísero meio bilhão e não contabilizado? Daquela montanha de mais de trilhão de reais, nada menos que R$ 1,2 trilhão são destinados a despesas obrigatórias, basicamente Previdência e pensões, pessoal, penduricalhos, benefícios sociais, saúde e educação.
Em investimentos, no mesmo período de janeiro a julho deste ano, o governo gastou ridículos R$ 32 bilhões. Outros R$ 90 bilhões foram gastos no custeio da máquina pública. Foram, portanto, pouco mais de R$ 120 bi para tocar todo o governo federal. Claro que sobra pouco para as questões climáticas.
Pela regra do arcabouço fiscal, a despesa total do governo tem um teto. Pode crescer, de um ano para outro, até 2,5% acima da inflação. Ocorre que aquelas despesas obrigatórias crescem mais do que isso, comprimindo os demais gastos, chamados discricionários (investimentos e custeio).
SEM CORTES – Como o governo quer ampliar os gastos discricionários, teria de cortar nos obrigatórios. Como não consegue ou não quer fazer isso, inventa o truque de tirar despesas da contabilidade.
Dizem: o país está pegando fogo, não é hora de respeitar o teto fiscal. Emergência é emergência. Verdade. Mas o governo se vê diante dessa ameaça quando já está gastando além do que arrecada, tomando mais dívida e pagando mais juros. Para este ano, o déficit previsto não é mais zero, mas cerca de R$ 28 bilhões, também permitido pelo arcabouço. E deixando de fora os créditos extraordinários e outras diversas despesas, como o pagamento de precatórios.
Contabilizado ou não, o déficit real é bem maior, e isso limita a ação de todo o governo. Aumenta o endividamento e, pois, provoca alta dos juros e atrapalha o combate à inflação. E sobra pouco para a emergência, contabilizada ou não.