A complexidade da vida e a redenção da alma humana em Guerra e Paz de Liev Tolstói. Por Flávio Chaves

Por Flávio Chaves – Jornalista, escritor e membro da Academia Pernambucana de Letras. Foi Delegado Federal/Minc 

Escrever sobre Guerra e Paz de Liev Tolstói é embarcar numa jornada densa e multifacetada pela alma humana. Publicada em 1869, a obra transcende o romance histórico para se tornar uma vasta crônica filosófica e psicológica, que abrange as questões mais profundas da existência. Tolstói constrói uma narrativa que explora os altos e baixos do espírito humano, os meandros da sociedade russa do início do século XIX, e os impactos devastadores das guerras napoleônicas. Contudo, é a profundidade da análise moral e existencial que eleva Guerra e Paz a um dos maiores monumentos literários da humanidade.

Um dos traços mais notáveis de Guerra e Paz é sua ambição em abarcar praticamente todos os aspectos da vida humana. Tolstói, como um observador atento da condição humana, faz uso de uma multiplicidade de personagens para examinar diferentes perspectivas sobre o amor, a guerra, a morte, a fé, e o sentido da vida. Através dos olhos de figuras como Pierre Bezukhov, o herdeiro espiritualmente desorientado, e Andréi Bolkonsky, o aristocrata idealista que busca um propósito na guerra, somos levados a questionar nossas próprias aspirações e ideais.

Tolstói não se contenta com uma mera exposição dos eventos históricos. Ele mergulha profundamente nas tensões psicológicas e emocionais que definem seus personagens. É uma obra que nos força a confrontar a impermanência da vida e as ilusões que criamos para justificar nossas ações. Se, por um lado, ele retrata as batalhas napoleônicas com uma precisão quase documental, por outro, seu foco permanece invariavelmente nos dilemas interiores dos indivíduos.

Talvez um dos aspectos mais intrigantes de Guerra e Paz seja a maneira como Tolstói desafia as narrativas tradicionais da história. Ele critica a ideia de que grandes figuras, como Napoleão Bonaparte ou o czar Alexandre I, são os principais motores dos eventos históricos. Para Tolstói, a história é moldada pelas decisões coletivas de milhares de indivíduos, e os líderes são apenas peões em um jogo muito mais vasto e imprevisível.

Essa visão se manifesta em uma das passagens mais famosas do livro, onde Tolstói compara a história a uma manada de animais que se move por conta própria, independente da vontade de qualquer líder. A guerra, portanto, não é uma consequência do gênio de Napoleão, mas de uma série de eventos caóticos que culminam em destruição. Essa visão anti-heroica da história era radical para sua época, e ainda ressoa fortemente na literatura e filosofia contemporâneas.

No cerne de Guerra e Paz está também uma busca por redenção. Pierre, que começa a obra como um herdeiro rico, mas perdido, passa por uma jornada espiritual que o leva a questionar os valores superficiais da nobreza russa. Ele busca significado em diferentes sistemas de crença, desde a maçonaria até uma forma mais pessoal e mística de cristianismo, antes de finalmente encontrar uma forma de paz interior através do amor e da aceitação das imperfeições da vida.

Já o príncipe Andréi representa o oposto: inicialmente, ele é guiado por um desejo quase heroico de encontrar grandeza na guerra. Entretanto, ele se desilude com a brutalidade e o absurdo da batalha, especialmente após a derrota na Batalha de Austerlitz. Sua jornada é marcada pela tentativa de conciliar a aspiração ao heroísmo com a realidade trágica da existência humana.

Natasha Rostova, por sua vez, é a personificação do amor ingênuo que se transforma em maturidade emocional ao longo do romance. Sua trajetória reflete as alegrias e dores do crescimento, da inocência romântica à aceitação das perdas e limitações da vida adulta. Ela é uma das personagens mais complexas de Tolstói, revelando a profundidade com que ele conseguia capturar a psique feminina em um período dominado por perspectivas masculinas na literatura.

A guerra em Guerra e Paz não é apenas um conflito físico entre nações, mas também um espelho da batalha interna que cada personagem enfrenta. Tolstói apresenta a guerra como um processo desumanizador, uma força que expõe tanto a nobreza quanto a fragilidade dos seres humanos. Em vez de glorificar as batalhas, ele destaca o sofrimento, o caos e a futilidade da violência, uma visão que se distancia das narrativas heroicas que prevaleciam em sua época.

Em suas descrições de guerra, Tolstói esmiúça a realidade psicológica e existencial dos soldados no campo de batalha. O medo, o desespero e a confusão sobre o verdadeiro propósito da guerra são constantes, levantando a questão de até que ponto os seres humanos são agentes de seus próprios destinos. Ele se pergunta: “Será que as grandes mudanças da história são realmente comandadas pelos líderes, ou somos todos, no final das contas, vítimas de forças incontroláveis?”

Em última análise, Guerra e Paz é um testemunho da visão filosófica de Tolstói sobre a vida. Ele oferece uma narrativa épica que vai além das tramas pessoais e eventos históricos, explorando a essência da condição humana. O amor, a busca por significado e o confronto com o destino são temas universais, tratados com uma riqueza de detalhes que transforma os personagens em arquétipos da própria humanidade.

Tolstói, ao escrever Guerra e Paz, criou um espelho através do qual podemos enxergar nossa própria complexidade. O poder da obra está, sobretudo, em sua capacidade de nos forçar a olhar para nossas escolhas, nossas ilusões e a inevitabilidade da morte com uma clareza quase brutal. No entanto, como nas palavras de Pierre Bezukhov: “Tudo passa, exceto o que é eterno.”

Por isso, Guerra e Paz não é apenas uma obra-prima da literatura russa ou mundial, mas um tratado atemporal sobre as tensões entre o caos e a ordem, o desejo humano de encontrar significado em um mundo que muitas vezes parece negá-lo, e a esperança eterna que reside no amor e na compaixão.

Tolstói constrói em Guerra e Paz uma narrativa monumental que transcende o tempo, oferecendo uma análise profunda sobre as vicissitudes da vida e da história. Sua crítica à ideia do grande homem histórico, a ênfase na busca espiritual e a maneira como a guerra é retratada como um processo de desumanização fazem desta obra um estudo penetrante sobre a complexidade da alma humana. Ao final, é o amor, em suas várias formas, que oferece uma rota para a redenção – uma mensagem que ressoa através dos tempos e ainda nos desafia a questionar nossas escolhas e valores.