Ferreira Gullar: O poeta que traduzia a alma brasileira. Por Flávio Chaves

 Dia 10 de setembro marca o nascimento desse gigante da literatura

Por Flávio Chaves – Jornalista, escritor e membro da Academia Pernambucana de Letras. Foi Delegado Federal/Minc   

No dia 10 de setembro de 1930, nascia em São Luís do Maranhão um dos maiores poetas do século XX, José Ribamar Ferreira, mais conhecido pelo pseudônimo Ferreira Gullar. Sua trajetória é um marco na literatura e na cultura brasileira, atravessando diversos momentos históricos e literários, sempre permeada por um profundo senso de humanidade e inquietação criativa.

Filho de um comerciante, Gullar cresceu em um ambiente provinciano, mas desde cedo demonstrou um fascínio pela linguagem. Ele começou a se destacar no cenário literário na década de 1950, quando se mudou para o Rio de Janeiro e se envolveu com os movimentos literários e artísticos da época. Em 1954, lançou seu primeiro livro, Um Pouco Acima do Chão, que já anunciava seu olhar inovador sobre o mundo e a poesia.

No final dos anos 1950, Gullar se tornou um dos fundadores do neoconcretismo, movimento artístico que defendia uma maior liberdade expressiva em contraposição ao concretismo rígido. Sua obra Poema Sujo (1976), escrita no exílio, tornou-se uma das mais importantes da literatura brasileira, misturando memórias pessoais e históricas em um longo poema de tom confessional, em que ele revisita sua infância, sua cidade natal e o Brasil sob a ditadura militar.

A poesia de Gullar é profundamente marcada por uma busca incessante pela verdade existencial e social. Ele acreditava que a poesia não era apenas uma forma de expressão, mas uma maneira de intervir no mundo, de questionar as injustiças e de dar voz ao sofrimento humano. Essa postura é evidente não apenas em sua produção poética, mas também em seus ensaios, crônicas e peças teatrais.

Gullar transitou entre diversas fases poéticas, sendo uma voz plural e mutável. Do lirismo intimista à poesia de cunho político, ele sempre se manteve fiel ao compromisso de denunciar as opressões e descrever as contradições do mundo. O Poema Sujo é um dos exemplos mais poderosos dessa dualidade entre o pessoal e o político, um texto de resistência contra a ditadura e, ao mesmo tempo, um mergulho nas lembranças afetivas do autor.

Além de poeta, Ferreira Gullar foi também um crítico de arte, tradutor, biógrafo e ensaísta. Sua capacidade de transitar entre diferentes campos do saber e das artes fez dele um intelectual completo, alguém que refletia sobre a vida e a arte com uma visão crítica e inovadora.

Gullar, como homem público e intelectual, nunca se furtou de expressar suas opiniões. Durante a ditadura militar, ele foi perseguido e obrigado a viver no exílio, primeiro na Argentina e depois em outros países da América Latina. Esse período longe de seu país o marcou profundamente, e suas obras desse tempo são impregnadas de uma saudade dolorosa do Brasil e de uma crítica contundente ao regime autoritário.

Seu humanismo não se restringia à luta política. Gullar acreditava na poesia como uma força de resistência, capaz de revelar a beleza do mundo mesmo nas circunstâncias mais adversas. Para ele, a arte tinha uma função essencialmente libertadora e transformadora. Ele dizia: “A arte existe porque a vida não basta”, refletindo sua crença no poder transcendental da criação artística.

Ao longo de sua carreira, Ferreira Gullar recebeu diversos prêmios, entre eles o Prêmio Camões, em 2010, o mais importante reconhecimento literário de língua portuguesa. Mesmo após sua morte em 2016, seu legado continua vivo, sendo reverenciado tanto pelo público quanto pela crítica.

A literatura de Gullar segue inspirando novas gerações de leitores e escritores com sua vitalidade, coragem e compromisso com a verdade. Seu trabalho transcendeu as fronteiras da linguagem, ampliando os horizontes da poesia brasileira e consolidando-o como uma das vozes mais influentes do nosso século.

Em seu poema “Traduzir-se”, Gullar fala da complexidade do ser humano e de suas contradições internas, uma espécie de metáfora para sua própria vida e obra:

“Uma parte de mim é todo mundo:
outra parte é ninguém:
fundo sem fundo.
Uma parte de mim é multidão:
outra parte estranheza
e solidão.”

No dia 10 de setembro, comemoramos o nascimento desse grande mestre da poesia, um homem que traduziu, como poucos, a alma humana em palavras. Ferreira Gullar nos deixou um imenso legado literário e humanista, que ecoa em cada verso, em cada reflexão sobre a vida e a sociedade. Seu nome está inscrito, para sempre, na história da literatura brasileira.