Escândalo que lançou suspeitas sobre Rui Costa na pandemia tem novo capítulo

Em 2020, o Brasil enfrentava os horrores da pandemia. Ainda não havia vacina, os hospitais estavam superlotados e faltavam material e remédios para tratar os doentes — ambiente perfeito para a atuação de aproveitadores. E eles surgiram aos montes, em vários estados, aplicaram golpes, saquearam dezenas de milhões de reais dos cofres públicos e continuam livres. Na semana passada, a Polícia Federal realizou uma operação de busca para tentar recuperar o dinheiro desviado em um dos casos mais emblemáticos desse período. Sem qualquer cuidado ou apuro formal, o Consórcio Nordeste, grupo que reúne os governadores da região, pagou 48 milhões de reais por 300 respiradores que nunca foram entregues. As investigações já identificaram os principais personagens envolvidos no enredo, mas ainda não foram capazes de apontar a exata responsabilidade de cada um, o que acaba deixando culpados e eventuais inocentes na mesma situação constrangedora. O ministro-chefe da Casa Civil, Rui Costa, é um exemplo.

Na época do escândalo, Costa era presidente do Consórcio Nordeste. Seria dele, em princípio, a responsabilidade política pela tramoia. O ministro, no entanto, garante que desconhecia certos detalhes do contrato, que não sabia que a empresa escolhida para fornecer os respiradores sequer era do ramo e afirma que foi ele quem acionou a polícia, assim que tomou conhecimento das irregularidades. A sombra da suspeita, porém, continua pairando. A operação da PF da semana passada mirou o empresário baiano Cleber Isaac Ferraz Soares.

Os agentes apreenderam documentos e aparelhos de celular. Segundo as investigações, ele se apresentava como “amigo” do então governador da Bahia, Rui Costa, e de sua esposa, a conselheira do Tribunal de Contas estadual, Aline Peixoto. Cleber e o lobista Fernando Galante atuaram como intermediários do contrato assinado entre o Consórcio Nordeste e a empresa Hempcare para o fornecimento dos respiradores. Por esse “serviço”, os dois receberam nada menos que 12 milhões de reais a título de “comissão” — o equivalente a 25% de todo o dinheiro.

O relatório a auditoria inédita do Tribunal de Contas da União (TCU), que complementa as investigações da Polícia Federal, mostra que o processo de compra foi eivado de fraudes, do princípio ao fim. A formatação do negócio, segundo os técnicos, foi feita para “dar ares risíveis de legalidade ao procedimento”. Os auditores foram taxativos ao concluir que “não é possível afirmar que houve boa-fé” e que o principal auxiliar de Rui Costa no Consórcio, o então secretário-­executivo do órgão, Carlos Gabas, ex-ministro do governo de Dilma Rousseff, “contribuiu efetivamente para a concretização da irregularidade”. É a assinatura de Gabas que consta no documento que atestou que os equipamentos, que nunca foram entregues, haviam sido recebidos e estavam em “perfeitas condições”. A compra dos respiradores, concluiu a auditoria, “além de evidenciar o dano ao erário, escancara a balbúrdia do processo de planejamento, de orçamento e de mitigação de riscos” do órgão presidido à época pelo atual chefe da Casa Civil.

A equipe do TCU destaca que os indícios de que a aquisição era suspeita eram evidentes desde o início, mas mesmo assim o negócio foi levado adiante. A Hempcare foi aberta nove meses antes da assinatura do contrato, tinha um capital social irrisório e apresentava como credenciais a “expertise” na importação de roupas de praia da China e medicamentos à base de maconha. “Se eu trago biquíni, trago respirador”, comentou à época Cristiana Prestes Taddeo, dona da empresa, convidada a assumir a tarefa de comprar os respiradores, já que não houve licitação. Depois do escândalo, ela devolveu a parte do dinheiro que havia recebido, fez um acordo de delação premiada com a Justiça, contou detalhes da trapaça e se livrou da prisão. O TCU não poupou os gestores do Consórcio Nordeste: “É razoável afirmar que era possível ao responsável ter consciência da ilicitude do ato que praticara e que lhe era exigível conduta diversa daquela que adotou, consideradas as circunstâncias que o cercavam. Ademais, não foi possível constatar excludentes de ilicitude, de culpabilidade e de punibilidade”, descreveu a auditoria, em referência aos procedimentos administrativos adotados por Gabas.

Um laudo do Ministério Público apresentou em números a dimensão da fraude. Os peritos concluíram que os respiradores vendidos ao Consórcio Nordeste apresentavam sobrepreço de até 318% na comparação com equipamentos oferecidos por outros fabricantes. O documento ressalta ainda que, se os respiradores tivessem sido entregues, o que não aconteceu, ainda assim os cofres públicos teriam amargado prejuízos de mais de 28 milhões de reais. O inquérito que há quase quatro anos mantém Rui Costa na incômoda situação de investigado ganhou robustez com o acordo de delação premiada da dona da Hempcare. Em conversas com interlocutores, Cristiana contou que Cleber Isaac, o empresário que intermediou o contrato, falava em nome do governador, dizia que era melhor amigo dele e que, por isso, mandava na Bahia. Nas negociações para a aquisição dos aparelhos, segundo a empresária, ele mostrava prints de supostas conversas com Rui Costa e tinha registrado em seu celular um contato com o nome de “Doutor”. Seria o número do telefone reservado do então governador. O negócio, portanto, dependeria dele para ir em frente. E, para ir em frente, era preciso pagar a “comissão”. Isaac, evidentemente, pode ter inventado essa história.

Da Revista Veja