Rei Lear é uma das peças mais citadas em textos sobre o envelhecimento. A montagem de Juca de Oliveira é uma oportunidade para aqueles interessados em conhecer a obra, uma vez que a chance é mínima de assistirem uma encenação clássica, completa, algo distante da realidade teatral brasileira, já que dependeria de recursos para mais de 22 personagens com fala! William Shakespeare (1564-1616) oferece oportunidades de incontáveis leituras. O monólogo de Juca, portanto, é apenas uma delas e atende perfeitamente a quem procura conhecer a essência de uma das quatro grandes tragédias do autor inglês.
A história do soberano, que, aos 80 anos, decide dividir o seu reino entre as filhas é considerada uma reflexão sobre a velhice. Mas a peça de 1606 é, acima de tudo, uma grande discussão sobre o exercício do poder. A lição maior da peça: o bom governante é obrigado a fazer sacrifícios, abrir mão de sua vida pessoal, de desfrutá-la como os outros mortais o fazem em nome de uma institucionalidade. Ou seja, em benefício da comunidade. O poder prescinde direitos e deveres.
O grande erro de Lear, portanto, foi acreditar que poderia apenas usufruir das benesses do trono sem amargar as agruras, o fardo, enfim, a responsabilidade. Ao transferir as obrigações às filhas – duas das três, como se sabe – , o rei deixou-se levar pela ilusão de um poder sem restrições a quem o exerce. Pensou em manter seu exército, seus serviçais, suas regalias, “o nome e a pompa”, como ele mesmo diz, e, como se existisse almoço grátis, sem a necessidade de dar satisfações ou cumprir a liturgia do cargo.
Foi punido pela ganância, pelo individualismo e pela falta de solidariedade das filhas Goneril e Regan. É nesta relação intergeracional que a peça oferece material para a reflexão sobre o envelhecimento. As herdeiras de Lear recusam qualquer tipo de pacto geracional, semelhante ao acordo do Estado Previdenciário do pós II Guerra. Aqueles que têm saúde para trabalhar pagam pela sobrevivência daqueles que já não podem mais labutar. Na peça, porém, as filhas são envenenadas pela perspectiva de poder. Uma perspectiva infinita.
Goneril e Regan recusam-se a sustentar o pai, manter seu padrão de vida, com medo de perder o poder. Deixam Lear sob a tempestade, como mendigo. É neste momento da peça que ocorrem semelhanças com a sociedade em processo de envelhecimento do século XXI. Ao contrário do que escreveu Juca de Oliveira no programa de seu Lear, os brasileiros, de forma alguma, expulsam de casa seus pais idosos para “encarcera-los em asilos”. O asilamento também não é sinônimo de abandono ou de maus tratos, sobretudo, nos países desenvolvidos.
Os idosos brasileiros vivem em inúmeros arranjos parentais ou de proximidade. Apenas 1% deles vive em asilos (até porque o governo federal só mantém um asilo público no país). Isso não quer dizer, no entanto, que os idosos brasileiros em convivência com suas famílias estejam imunes ao sofrimento de Lear. A maioria dos casos de agressão e maus tratos a idosos tem como criminosos os familiares.
Grande parte dos indivíduos da sociedade contemporânea também penaliza seus idosos em busca de ampliar o poder que têm aos olhos dos outros. Se na sociedade elisabetana o poder era oriundo da terra e dos exércitos, no capitalismo do século XXI sua manifestação é simbólica. E esses símbolos cristalizam-se na sob a forma dos mais variados bens de consumo. Na sociedade contemporânea, consumir é ter poder. Não é o “sim, nós podemos”. É o “nós consumimos, logo, nós somos e podemos”. O indivíduo, assim, persegue esse poder com a mesma ética ou moral das monarquias europeias descritas por Shakespeare.
É em nome deste “poder de consumir” que Goneril e Regan, se vivessem hoje, deixariam o pai à mingua. Se não à mingua, a uma condição muito mais perversa. As famílias, embora mantenham seus idosos sob o mesmo teto, ou um lar de parentes, o excluem da sociedade de consumo. Do ponto de vista da família como unidade orçamentária, o consumo é um privilégio dos filhos e netos. Estes moram bem, se vestem bem, têm acesso às tecnologias, planos de saúde, enfim, as regalias do poder, o idoso é, muitas vezes, visto como um não-consumidor voluntário. “Papai não liga mais para isso, não”, costumam repetir, como se conforto, beleza, prazer fossem exclusividade da juventude.
Há famílias brasileiras nas quais filhos e netos têm acesso a todo tipo de consumo supérfluo, mas o idoso vive sem plano de saúde, sem viagem, sem roupas novas, sem aparelho celular. Os não-idosos estabelecem que o idoso “não precisa disso” e ponto final. Muitas vezes essas prioridades de despesas são estabelecidas com os recursos da própria pessoa idosa. Tal como em Lear. O idoso, por sua vez, vive sob essa violência consentida por uma abnegação em nome do bem-estar dos filhos e netos fazendo jus à hipócrita frase de Edmundo, personagem calhorda da peça de Shakespeare, que diz que o jovem só sobe quando o velho cai.
Fonte: Blog Economia da Longevidade – Jorge Félix foi o primeiro pesquisador (CNPq) a citar o conceito economia da longevidade (silver economy) no Brasil. Doutorando em Sociologia e mestre em Economia Política. É professor convidado na PUC-SP (Cogeae), FESP-SP, USP (EACH) e jornalista.