Demétrio Magnoli
O Globo
Desde a Lei de Drogas (2006), ninguém é preso pelo porte de maconha para consumo próprio — se for da classe social “certa”. Mas há mais de 180 mil presos por tráfico de drogas (25% da população carcerária total), muitos dos quais jovens pobres condenados pela venda de pequenas quantidades de maconha. O Supremo tem, nos próximos dias, a oportunidade de frear a marcha dessa escandalosa injustiça social. Tudo depende, porém, de um acordo sobre gramas.
O carinha A compra maconha do carinha C para consumi-la. A lei vigente define os dois, A e C, como criminosos — mas prescreve prisão apenas para C. Como, porém, na ausência de um flagrante da transação, distinguir o consumidor (A) do “aviãozinho” (C)?
AVALIAÇÃO POLICIAL – Segundo a lei, a polícia resolve o dilema por meio de uma avaliação do “local” e das “circunstâncias” da apreensão. Sob uma pátina superficial de coerência (A e C cometeram crimes), oculta-se uma cínica distinção de classe social: um fumará à vontade; o outro ingressará na universidade do crime instalada nas penitenciárias.
Nos Estados Unidos, diversos estados, governados por democratas ou republicanos, legalizaram o comércio de maconha e seus subprodutos, vendidos em lojas reluzentes nas áreas nobres das cidades. Nossa elite política, à direita e à esquerda, furta-se vergonhosamente a rediscutir a criminalização das drogas leves.
O Supremo não pode substituir o Congresso e, portanto, está condenado a agir nas margens, produzindo interpretações legais. O risco da reinterpretação em curso é congelar a injustiça. A tese dominante, que já conta com quatro votos, vai nessa direção.
QUESTÃO DE SAÚDE – De acordo com ela, o consumidor não deve ser criminalizado, pois todos têm o direito de fazer mal à própria saúde, mas o fornecedor deve ser, pois prejudica a saúde dos demais.
Por essa via, remove-se a fina pátina original da coerência e decide-se que, numa transação voluntária entre dois adultos, um figura como vítima inocente e seu parceiro como pérfido criminoso. O carinha C continuará a ser encarcerado por crime inafiançável, enquanto o carinha A ficará livre até mesmo do registro de um crime em seu prontuário.
Os juízes têm, entretanto, uma chance de, radicalizando o exercício da incoerência, suprimir as implicações perversas da tese que elegeram. O julgamento foi interrompido justamente para propiciar a exploração dessa hipótese, por meio da substituição do arbítrio policial pela definição de uma quantidade de maconha capaz de distinguir o consumidor (não criminoso) do traficante (criminoso).
VÁRIOS PESOS – O sentido social e moral da decisão do STF depende, literalmente, de uma balança de precisão. Gilmar Mendes encarregou-se de formular uma proposta quantitativa. Alexandre de Moraes sugeriu algo entre 25 e 60 gramas. Gramas de injustiça: seriam números perfeitos para o consumidor de classe média e, claro, uma inapelável sentença condenatória para os “aviõezinhos”.
Tudo permaneceria mais ou menos como está — sem a necessidade do arbítrio policial. O Brasil de mentira celebraria o “avanço progressista”; a “guerra às drogas” seguiria seu rumo sombrio nas periferias e favelas.
A alternativa é anular parcialmente a Lei de Drogas por uma reinterpretação mais ousada. A balança do STF precisaria mover-se na direção de quantidades de maconha suficientes para converter o “aviãozinho” em “consumidor”, circunscrevendo a criminalização à elite do narcotráfico.
PARAR AS PRISÕES – O gesto ilusionista dos magistrados teria o condão de paralisar o maquinário do encarceramento em massa que só reforça as facções do crime organizado.
Convivemos, todos os dias, com o ilusionismo da barbárie. Fingimos que a “guerra às drogas” limita o uso de entorpecentes, enquanto multidões de viciados acendem cachimbos de crack, à luz do dia, nas ruas centrais de São Paulo.
Prendemos garotos que vendem papelotes de maconha nas esquinas, enquanto, em pleno porto de Santos, aos olhos de todos, o PCC administra os embarques de uma tonelada mensal de cocaína destinada aos mercados europeus. Nessas tristes circunstâncias, por que não experimentar um pouquinho de ilusionismo civilizatório?