Digitocracia. Por Flávio Brayner

É curioso como aquele argumento “emancipatório” de Paulo Freire sobre a “educação bancária” (aulas expositivas, verticais e conteudísticas) agora esteja servindo a um projeto que não tem absolutamente nada de… emancipatório, mas de simples adequação a uma ordem tecnocrática…

Por Flávio Brayner – Escritor e Professor Emérito da UFPE

No dia 7 de Maio de 1959, o professor de Cambridge C. P. Snow proferiu uma conferência que ficou conhecida como “As duas culturas” (The two cultures), sobre a separação contemporânea entre as Ciências Exatas e as Humanas, mostrando que tal separação era desvantajosa para ambas: a Inglaterra, dizia Snow, condenara as Humanidades em detrimento da educação científica. Isto facilitara, é verdade, a vitória da 2° Guerra, mas a Alemanha e a América promoveram sempre uma dupla formação das elites (Ciências e Humanidades): assim, a ausência de diálogo era, para ele, danosa!

Parece que tal “ausência” de diálogo continua a prosperar entre nós, gerando incompreensões e desentendimentos, a meu ver, deletérios para a construção de uma, mesmo que precária, concedo, compreensibilidade do mundo. Aceito com serena tranquilidade que existem várias “universidades” dentro da Universidade, quer dizer, há muitos projetos e ideias de Universidade no mesmo espaço institucional.

Meus ex-colegas de UFPE, Sílvio Meira e Pierre Lucena, hoje dirigentes e conselheiros do Porto Digital, publicaram artigo no DP (26/06/2023) intitulado “O fim do campus isolado: vai faltar aluno pra tanta estrutura”. O argumento se extende desde o “esvaziamento das Ciências Humanas” e suas “aulas expositivas não diretamente aplicáveis à vida” (na típica linhagem do Pragmatismo americano e num modelo de universidade performática, onde se inspiram os autores do artigo), até a “revisão dos métodos” e de uma “reflexão sobre o quê ensinamos, como ensinamos e como os alunos aprendem”. Incomoda nossos autores o “silêncio das Universidades (que chamam de) estatais”, e não de “públicas” (Nota: o estatal não é o público e foi exatamente para fugir das tutelas do Estado e da Igreja que a universidade moderna se concebeu. Universidade Estatal é coisa de estado totalitário! Uma confusão, Silvio e Pierre, que não posso considerar como inocente! E este vosso “liberalismo” de pantuplas não me convence…). A tese do artigo continua com a denúncia do “isolamento geográfico, urbano e social dos campi” e as dificuldades que impõe aos alunos.

É curioso como aquele argumento “emancipatório” de Paulo Freire sobre a “educação bancária” (aulas expositivas, verticais e conteudísticas) agora esteja servindo a um projeto que não tem absolutamente nada de… emancipatório, mas de simples adequação a uma ordem tecnocrática, ou melhor, DIGITOCRÁTICA, pra não me afastar muito da Av Rio Branco e do Cais do Apolo! A Universidade, volto a insistir, não é só um lugar para onde se vai assistir aulas expositivas: é um lugar metafórico de “encontro” e de “afastamento”. “Encontro” com determinadas formas de saber exatamente “separadas” da vida factual e cotidiana (a teoria, o conceito, a abstração, a universalidade… que não estão passeando ali na calçada!), mas também encontro com culturas e subjetividades diferentes, sem as quais, a minha não pode se constituir. Além do mais, meus caros ex-colegas, para que se possa refletir sobre o quê ensinamos, como ensinamos e como se aprende, precisamos de… Ciências Humanas: precisamos de Filosofia da educação, de Didática e de Psicologia Cognitiva (além, claro, de um forte aporte da Sociologia e da História: o QUÊ ENSINAMOS depende do modelo de sociedade que queremos e das pessoas que precisamos formar!). Nenhuma exposição atinge as pessoas da mesma maneira e toda vez que expomos algo à vista dos outros, ele se torna “opinião” não apodítica (não demonstrativa) expressa em fala, argumento e consciência judicativa, que me permite agir no mundo. O ingênuo é supor que eu só aprendo aquilo que eu mesmo faço (o “Learning by doing” do Pragmatismo de Dewey) e que a teoria que reflete sobre a teoria (inclusive científica) é perda de tempo e de dinheiro. O Pragmatismo de William James – uma tentativa de superar a metafísica da tradição ocidental- supõe, entre outras coisas, que a prática é o critério da verdade! O problema é como definir os conceitos de “prática” e de “verdade” sem o apoio das, de novo, Ciências Humanas. Tudo isso me faz lembrar a frase, meio provocativa -mas de grande interesse- de Heidegger, quando dizia que “A ciência não pensa!”: a Ciência parte de pressupostos (objetividade do real, causalidade, previsibilidade, universalidade…) pensados e fundados pela… Filosofia. A Ciência não se volta para questionar e interromper seus procedimentos e colocar em questão seus pressupostos: quem faz isso é a Epistemologia.

O mais curioso naquele artigo é que, de um lado, nós, acadêmicos, gritamos quando o obscurantismo quer fechar as Ciências Humanas, essas Ciências chatas e perniciosas que questionam nossas certezas tão firmes e adquiridas com método e objetividade. Agora, que gritemos quando a estrutura das universidades se ampliam -sobretudo oferecendo condições estruturais às famigeradas Ciências Humanas- aí, meu público (ou melhor, “meu estatal”), é inadmissível.

Ninguém, claro, é contra a modernização tecnológica das universidades ou sua adaptação às novas condições sociais que estão surgindo com os novos pactos intersubjetivos mediados por um tipo de saber específico, mas sugerir o fechamento dos institutos de Humanidades por que… “falta aluno” me parece apenas o uso de um argumento circunstancial com vista à realização de um antigo projeto tecnocrático: o fim das Ciências Humanas (o ex-ministro Weintraub achava que só deveria ficar Medicina, Enfermagem e cursos técnicos. Estamos diante do ” PROJETO WEINTRAUB.2″?).

Meus colegas prometem, por iniciativa do Porto Digital, realizar uma pesquisa nacional sobre o “incômodo” dos estudantes com o tal “isolamento dos campi” e a necessidade de “adaptá-los às condições e recursos tecnológicos disponíveis”. Sugiro que não gastem tempo e recursos com isso: sabemos que tal pesquisa não vai “extrair” uma verdade sobre o “incômodo” de sua amostra de estudantes: vai induzir e produzir o incômodo, a partir dos pressupostos e preconceitos já expostos no artigo e, logo a seguir apresentar a “solução” que, claro, o Porto Digital já tem!