“Cena do crime no caso Serrambi pode ter sido montada”, diz legista

Desaparecimento e mortes das adolescentes está completando duas décadas, sem punição dos responsáveis

Do JC Online

Um dos casos de maior repercussão na história recente de Pernambuco continua sem solução, mesmo após completar 20 anos. Foi no dia 3 de maio de 2003 que Maria Eduarda Dourado e Tarsila Gusmão desapareceram durante um feriadão na casa de um amigo em Serrambi, em Ipojuca. Os corpos delas foram encontrados 10 dias depois, em um canavial na PE-51, em Camela, também em Ipojuca, com sinais de violência e crueldade.

Em entrevista ao Blog de Jamildo, o médico legista e especialista em Medicina Legal e Perícia Médica Reginaldo Inojosa, um dos peritos envolvidos no Caso Serrambi, revela, com base em análises científicas, que a cena do crime pode ter sido montada, e que uma das vítimas pode ter sido estrangulada antes de ser alvejada por tiros.

A conclusão foi tomada após a realização de um estudo de caso que analisou dois laudos periciais e um parecer técnico realizados na época. O estudo foi apresentado como requisito para a livre-docência do perito, e foi publicado na Revista Brasileira de Ciências Criminais. Ele apresentará as informações em um seminário realizado no próximo dia 18, na faculdade IDE, no Recife.

Laudos

A primeira perícia do Caso Serrambi foi feita no dia 13 de maio de 2003, pelo Instituto de Medicina Legal, um dia após os corpos serem encontrados. Na época, os kombeiros Marcelo e Valfrido Lira foram indiciados pelo crime e presos.

Uma segunda perícia foi realizada em novembro do mesmo ano, com laudo publicado em fevereiro de 2004, após resultados de exames médicos. O perito aposentado gaúcho Domingos Tocchetto e o legista paraibano Genival França participaram das perícias, emitindo um parecer técnico — ou seja, um terceiro documento.

Em 2018, Reginaldo Inojosa e outros três profissionais elaboraram o estudo de caso que detalhou que divergências entre os resultados dos laudos e do parecer, apontando que a cena do crime pode ter sido montada. Também assinam o documento Adriana Conrado de Almeida, Maria Izabel Cardoso Bento e Maria do Socorro Orestes Cardoso.

Para chegar à conclusão, os especialistas analisaram os laudos sobre a causa da morte e os instrumentos que provocaram lesões, exames antropológicos (para determinação do gênero, idade e cor da pele), exame odontolegal, exame toxicológico realizado em amostras de cabelos das vítimas, reação vital (conjunto de sinais que ocorrem somente quando as lesões são provocadas com a vítima viva, e não após sua morte), composição da pólvora no local do ferimento e a trajetória e o trajeto dos projéteis.

Adolescentes foram fotografadas pela última vez caminhando pela praia, no dia 3 de maio de 2003

Divergências nos laudos

Várias divergências entre os laudos foram observadas pelos pesquisadores. No primeiro laudo, por exemplo, consta a presença de tiro no abdômen de uma das vítimas, não registrado no segundo laudo nem no parecer. Uma das vítimas também apresentou fratura na mandíbula decorrente do tiro, registrada no primeiro laudo. Já no parecer, os peritos não concordam que a fratura ocorreu por causa da perfuração.

Outro fato relevante é a presença, no local do crime, de uma cápsula de projétil de revólver .40, na época de uso exclusivo da polícia, sendo compatível com o tipo de lesão encontrado em um dos corpos. A presença dessa cápsula não foi relatada no primeiro laudo.

Ainda, o primeiro laudo aponta que há fraturas na mão esquerda de uma das vítimas, decorrente de reação de defesa. No segundo laudo e no parecer também há a informação da fratura, mas eles divergem afirmando que ela não foi decorrente de defesa da vítima, pois o exame de reação vital na mão foi negativo.

Além das divergências, alguns fatos deixaram de ser notificados tanto nos laudos como no parecer, em diferentes ocasiões. A trajetória dos tiros e a concentração de pólvora, por exemplo, não foram registrados nos dois laudos, mas são citados no parecer. Exame toxicológico e reação vital também não constam em um dos laudos.

Estrangulamento

O estudo de caso também apontou que Tarsila foi estrangulada antes de ser alvejada a tiros. Essa informação não foi relatada nos laudos nem no parecer.

O pesquisador, porém, concluiu que houve o estrangulamento a partir da análise de fotos de um dos laudos, que indica a presença de sulco no pescoço, sugestivo de estrangulamento.

Ele ressalta, porém, que essa pode ser apenas uma hipótese. Isso porque, em um primeiro momento, não foi solicitado o teste, e em um segundo momento, não pode ser realizado por conta do avançado estado de putrefação do corpo.

Kombeiros Marcelo e Valfrido Lira na saída de uma das audiências do Caso Serrambi

Tiro na mão

Um dos exames realizados pelos peritos é o de reação vital, que identifica, por meio de análise de estrutura óssea, se a vítima foi atingida pelo projétil ainda em vida ou após sua morte. Isso é possível por meio de extravasamento de hemácias, que não ocorre em uma pessoa já morta, devido à ausência de circulação sanguínea.

“Em uma das amostras o resultado foi positivo e em outra, negativo, caracterizando que, no momento do tiro na cabeça a vítima estava viva, porém, quando a vítima recebeu o tiro na mão esquerda ela estava morta ou em estado de coma com pequena perfusão periférica. E quando a vítima foi atingida pelos disparos ela se encontrava deitada em decúbito ventral. E possível já existia a presença de estrangulamento”, afirma o estudo.

Cena do crime montada

Diante das divergências e informações analisadas, os pesquisadores apontam que o cenário onde os corpos foram encontrados foi montado.

“Ao analisar os laudos e o parecer, encontraram-se várias divergências, como a não descrição da imagem nas fotos 2304 sugestivos de estrangulamento não descritos nos laudos e parecer, trajetória e trajeto dos tiros, bem como a concentração da pólvora, intensidade de algumas lesões (fratura de glabela) caracterizando o uso de duas armas, teste de reação vital caracterizando que uma das vítimas estava morta quando foi alvejada pelos tiros, o que concluímos é que o cenário do local aonde os corpos foram encontrados foi montado”.

Como está o caso?

O estudo de caso foi citado, em 2018, pelo Superior Tribunal de Justiça, quando um recurso pedia a anulação do júri que soltou os kombeiros Marcelo e Valfrido Lira. O ministro do STJ Reynaldo Soares da Fonseca negou o pedido e manteve os kombeiros soltos.

Em setembro do mesmo ano, a Quinta Turma do STJ, de forma colegiada, também negou o agravo instrumental. O caso é dado como encerrado e transitado em julgado desde então, não cabendo mais recurso.

Com a soltura dos kombeiros, ninguém foi responsabilizado definitivamente pelas mortes de Tarsila e Maria Eduarda.