Deu no Estadão
Se ainda havia espaço para alguma dúvida, na semana passada ficou patente que os Inquéritos 4.781/DF e 4.874/DF, do Supremo Tribunal Federal (STF), estão servindo a propósitos muito distantes de seus objetivos originais. O primeiro foi aberto para apurar fake news e ameaças contra o Supremo, e o segundo, para investigar atuação de milícias digitais contra o Estado Democrático de Direito.
No entanto, foram usados agora para remover da internet conteúdo sobre projeto de lei em tramitação no Congresso e para investigar falsificação de cartão de vacinação do ex-presidente Jair Bolsonaro.
FERINDO AS REGRAS – Observa-se, nos dois casos, uso rigorosamente irregular dos inquéritos, descumprindo regras básicas do ordenamento jurídico. Além de prazo para terminar, toda investigação deve ter objeto certo e determinado. E nenhum juiz dispõe de competência universal.
Acertadamente, anos atrás, o STF rejeitou o entendimento expansivo da Lava Jato, no sentido de que todo indício criminoso envolvendo governo federal e partidos políticos deveria ser investigado e julgado pela 13ª Vara Federal Criminal de Curitiba.
No julgamento, o ministro Alexandre de Moraes ressaltou o absurdo de transformar uma única vara em “juízo universal de combate à corrupção”. De fato, a interpretação do então juiz Sérgio Moro e dos procuradores da Operação fez parecer, em determinado momento, que todos os grandes casos de corrupção do País ficariam concentrados em um único magistrado.
JUIZ NATURAL – Sob pretexto de combater a impunidade, burlou-se o princípio do juiz natural, que, como Moraes lembrou na ocasião, “é importante garantia de imparcialidade”.
Agora, o País assiste a uma situação similar. Sob pretexto de defesa da democracia em circunstâncias excepcionais, o STF mantém abertos inquéritos que, na prática, estão conferindo uma espécie de competência universal à Corte e, em concreto, ao relator, o ministro Alexandre de Moraes.
Os limites foram ultrapassados. O que era para investigar fake news contra o Supremo foi usado para arbitrar debate sobre projeto de lei.
INQUÉRITOS PERPÉTUOS – O STF agiu corretamente ao abrir os inquéritos. Existia fundamento jurídico a justificar a competência da Corte nessas investigações. No entanto, não existe fundamento jurídico para tornar esses inquéritos perpétuos, menos ainda para, servindo-se deles, transformar o ministro Alexandre de Moraes em “juízo universal de defesa da democracia”.
Essas investigações tiveram papel fundamental. Em momentos especialmente difíceis, elas representaram a eficaz reação do Estado brasileiro contra quem queria vandalizar o regime democrático.
Precisamente por isso, devem ser concluídas, como dispõe a lei. Manter os inquéritos abertos, além de ser ocasião para novas medidas irregulares, coloca em risco o bom trabalho feito antes.
MÉTODOS ILEGAIS – A Lava Jato não foi um aprendizado suficiente? Não há apoio popular, nem circunstância política, capaz de legitimar métodos ilegais. Transigir com tais práticas é fazer um tremendo desserviço ao País.
Sem ingenuidade, é preciso reconhecer a oportunidade. Os dois episódios da semana passada – arbitrar debate público por meio de inquérito policial e pendurar apuração de falsificação de cartão vacinação contra covid em procedimento relativo a crimes contra o Estado Democrático de Direito – facilitaram o trabalho do colegiado do Supremo.
Eles são muito acintosos para serem relevados. Não se pode tapar o sol com peneira. A condução atual dos Inquéritos 4.781/DF e 4.874/DF não está de acordo com a lei e a jurisprudência do Supremo.