Dorrit Harazim
O Globo
Difícil imaginar que o liberalismo americano não tenha conseguido produzir lideranças novas, com visão social arrojada
Faltavam cinco dias para a execução da operação mais sigilosa e arriscada do governo Barack Obama: o assassinato do líder terrorista Osama bin Laden fora marcado para o domingo, 1º de maio de 2011. Qualquer vazamento seria fatal. Entre deveres públicos e privados, o presidente dos Estados Unidos cumpriu todos, um a um, sem deixar transparecer tensão.
Fez um aguardado discurso sobre o futuro da educação, manteve encontros com visitantes estrangeiros, evitou um shutdown orçamentário do governo, jantou com apoiadores de sua reeleição, recebeu líderes religiosos, convocou reuniões sobre reforma das leis de imigração, debateu a intervenção militar na Líbia, inspecionou a devastação causada por um tornado no Alabama, foi até a Flórida abraçar uma parlamentar baleada por um extremista de direita.
JANTAR DE GALA – Na noite que antecedeu o Dia D, ainda participou do tradicional jantar de gala com jornalistas credenciados, onde desfiou a habitual aisance e o humor tão invejados por Donald Trump.
Amanheceu no Dia D jogando golfe num campo de nove buracos, como se aquele fosse um domingo comum. E em sua agenda oficial constava apenas “Reunião Mickey Mouse”, código usado para a operação desencadeada a 7.500 quilômetros dali, em Abbottabad, Paquistão, onde Bin Laden estava escondido.
Nesta semana, graças à lei de acesso à informação americana, o Washington Post obteve um lote de mais de 900 fotos das horas mais críticas vividas no interior da Casa Branca na tarde e noite daquele dia. Entre o momento em que os helicópteros da unidade especial SEAL decolaram para o ataque ao esconderijo do terrorista e a confirmação do êxito da missão, Obama ficou tão tenso que foi jogar baralho duas vezes com assessores, para desanuviar.
BIDEN REZAVA – A pressão sobre seus ombros era enorme já no primeiro minuto da transmissão do ataque surpresa, pois um dos helicópteros se esborrachara em solo. Mas Obama, então com apenas 49 anos, aguentou bem. Pouco antes da meia-noite, já de terno e gravata, anunciou ao mundo que o cérebro por trás dos atentados de 11 de setembro de 2001 contra as Torres Gêmeas estava morto. Joe Biden, seu vice-presidente à época, manteve um terço de reza entre os dedos o tempo todo.
O episódio voltou à lembrança nesta semana, quando o mesmo Biden, hoje no comando do país, anunciou sua intenção de concorrer à reeleição em 2024.
Coube ao New York Times pôr o foco no elefante plantado na sala — a idade avançada do democrata, que, se reeleito, estará com 86 anos ao término do segundo mandato. Em editorial franco, o jornalão recomenda a Biden levar a sério a preocupação do eleitorado com o fator idade: “A velhice ainda é considerada um tema sensível, e muitas pessoas, particularmente homens, relutam em discutir enfermidades por medo de demonstrar fraqueza”.
ENTREVISTAS E EXAMES – O método mais tradicional para um presidente demonstrar acuidade cognitiva e agilidade mental, lembra o matutino, consiste em submeter-se a frequentes (e duríssimas) entrevistas coletivas com a imprensa credenciada. Adicionalmente, a divulgação de boletins médicos exaustivos deveria ser a norma.
Biden, até agora, tem fugido das duas coisas. Não por acaso seu antecessor no cargo, Donald Trump (76 anos), tinha por médico particular um esquisitão que emitia boletins breves sobre seu ilustre paciente: — Indivíduo mais saudável jamais eleito para a Casa Branca.
O que assusta no cenário eleitoral americano, contudo, não é tanto a idade avançada, e sim a identidade dos principais contendores até agora.
CENÁRIO DESOLADOR – Um eventual rematch entre Joe Biden e Donald Trump em 2024 representará a calcificação definitiva do Partido Democrata e a rendição acovardada do Partido Republicano a um extremismo de direita. Nem os eleitores parecem satisfeitos com esse cenário.
Trump, além de ter perdido a reeleição, perdeu o controle do Senado pela primeira vez neste século, sofreu dois processos de impeachment e responde a pelo menos quatro outros processos dos mais cabeludos. Ainda assim, tem surrado as expectativas do governador da Flórida, o ultradireitista Ron DeSantis, seu principal concorrente partidário até agora.
Do lado democrata, a resignação parece ter se instalado. Biden foi o homem certo para frear a consagração de Trump naqueles revoltos tempos de 2020. Dentre os 28 pré-candidatos democratas daquele ano, revelou ser o único com índole, experiência e propósito adequados para devolver alguma normalidade à nação. Seria um “presidente de transição”, prometeu à época.
APESAR DE TUDO – Fez e faz o que pode — reduziu o desemprego de 14% para 3,4%, injetou uma bolada de US$ 369 bilhões na transição para uma economia limpa, conseguiu aprovar um pacote trilhardário para alavancar a decadente infraestrutura dos Estados Unidos, mas também coleciona erros e fracassos acachapantes. Não por acaso, segundo pesquisa da rede NBCNews, 70% dos americanos (e 51% dos democratas) se pronunciaram contra sua candidatura à reeleição. Ainda assim, será o candidato do partido.
O cenário é de exaustão e perigoso conformismo. Difícil imaginar que o liberalismo americano não tenha conseguido produzir lideranças novas, com visão social arrojada, moderna, voltada para a paz, muito além do presente imediato. Derrotar Trump já não basta — é o mínimo para os Estados Unidos sobreviverem como nação democrática.
— Vencer a batalha pela alma da América — diz o anúncio para a reeleição de Biden 2. É o mesmo do mesmo, só que pior.