Por CLAUDEMIR GOMES
O futebol me apresentou o mundo. O futebol explica o meu mundo. As imagens do ontem, e do hoje, me confundem. A memória me faz sentir grande ao rever fatos sublimes. Fatos do presente me deixam estarrecidos com a escalada da violência em espaços pensados para alegria e comemorações. O que vi, o que aprendi ao longo de mais de sessenta anos, não pode ser empanado por uma imagem. Aquilo é apenas a constatação de que as (bestas” existem desde os primórdios do mundo. E existirão sempre.
IMAGEM 1: Meu pai (Jaime Gomes), me leva pela primeira vez para assistir a uma partida de futebol. O jogo foi no Campo do Enchimento de João Vermelho: terra batida, traves quadradas, sem muros e sem alambrado. Me põe em cima da carroceria de um caminhão para que eu tivesse uma melhor visão do campo do jogo. E para me resguardar de algum imprevisto, que por um acaso, viesse a acontecer. Fato registrado no início dos anos 60, em Carpina, no século passado.
IMAGEM 2: Torcedor, com criança no colo, invade o campo de jogo, no Estádio Beira Rio, em Porto Alegre, para agredir os jogadores do Caxias, time que tirou o Internacional da decisão do Campeonato Gaúcho. Ao analisar a estultícia do torcedor colorado, observamos que ele veste uma bermuda da Torcida Jovem, do Sport, uma das organizadas mais violentas do futebol brasileiro.
As imagens do bem, implantadas pelo meu pai, não foram deletadas do meu subconsciente. Assim como, no futuro, aquele garoto, que ontem fora carregado como um fardo pesado, por um pai ensandecido em busca de uma briga no estádio, deverá ter seus valores pautados nos exemplos dados pelo seu “educador”. O garoto não nasceu perverso, mas caiu nos braços de um agente do mal.
Cresci com meu pai me levando aos estádios. Era o futebol me ensinando a conviver com as multidões. A aceitar o contraditório como um fato normal no nosso cotidiano. A bola me mostrava que a vida, tal como ela, não era reta, nem plana. Os gols podem acontecer em qualquer barra. Afinal, no jogo jogado, a esfera de maior magia, e cobiçada do planeta terra, a bola de futebol, rola para os dois lados.
O futebol faz parte da liturgia do domingo: ir a missa e assistir a um jogo de futebol. Parece até ensinamento da igreja católica. Em 1969, no Álbum Tudo Passará, o pequeno gigante, Nelson Ned, assegurou que, “domingo é um dia tão triste para quem vive sozinho”. A letra da música, Domingo a Tarde, era um testemunho de que o futebol une, agrega, alimenta o amor.
Em 1975 passei a integrar a equipe de esportes do Diário de Pernambuco, comandada pelo mestre, Adonias de Moura. O futebol era tudo para nós. E nós passamos a abdicar do convívio da família nos dias de domingo. Imposição do trabalho. Um trabalho prazeroso, que nos abria as portas do mundo através da alegria do esporte mais popular do planeta.
O futebol parecia surfar nas ondas de todas as revoluções iniciadas nos anos 60. Apesar das imposições ortodoxas vindas dos bastidores, a voz que se levantava das arquibancadas nos dava a sensação de liberdade. Amores diferentes, cores diferentes, mas todos juntos e misturados. Não havia segregação nos estádios. As ocupações em diferentes lugares nas praças de esportes, tinham como grande objetivo, ressaltar o espetáculo das bandeiras que pareciam bailar no ritmo das charangas.
Em junho de 1989, fui escalado, junto com o fotógrafo, Edvaldo Rodrigues, para cobrir um amistoso da Seleção Brasileira com a Dinamarca, em Copenhague. A partida fazia parte dos festejos do centenário da Federação Dinamarquesa de Futebol. O Brasil se preparava para disputar a Copa da Itália. Os dinamarqueses golearam – 4×0 – o time do técnico Sebastião Lazaroni. Nas arquibancadas, a cada gol da Dinamarca comandada pelo craque Michael Laudrup, a torcida alvirrubra entoava a canção dos Beatles: Yellow Submerine. Uma demonstração de civilidade inesquecível.
Após a queda das barreiras impostas pela internet, o bem e o mal passaram a ser protagonistas do maior clássico já existente na história do futebol. A bola rola para os dois lados, mas é triste testemunhar a vitória do mal em alguns confrontos. Na aldeia brasileira, estádios são fechados para torcedores; jogos são restritos às torcidas mandantes, mas nada parece conter as hordas do mal.
Como foi bom, e bonito, assistir a um jogo de futebol em cima da carroceria de um caminhão, chupando rolete de cana caiana.
