Uma modesta (e ateia) oração! Por Flávio Brayner

Por Flávio Brayner – Escritor e Professor Emérito da UFPE

Um leitor de meus artigos do JC me escreve fazendo-me gentilmente uma pergunta que,
há alguns anos, um aluno me fez e que, com minha resposta, abandonou meu curso (!)
(relatei o caso em artigo intitulado “A prova estética”): “-Você acredita em Deus?”.

Não, meu caro, não acredito Nele e acho que Ele também não acredita em mim! E penso
que Ele tem toda razão: não disponho de reservas de “credibilidade”, nunca detive a
verdade e espero, em minhas buscas, nunca encontrá-la (possuí-la é o maior perigo que
conheço). A ideia de que “Ele existe” (ou não) é, a meu ver, inadequada, porque supomos
o conceito de “existência” como algo empiricamente aferível, objetivamente verificável
(a representação que fazemos de um velhinho de longas barbas brancas, cajado e alva
túnica). Nesse caso, a mesma coisa eu diria do Belo, da Justiça, da Liberdade… coisas que
nunca “vi”, nunca as “toquei”, nunca “discuti” com elas: elas são apenas “idéias
reguladoras” que me permitem saber se as ações (estas reais e que atingem outras pessoas
e que têm consequências) estão mais perto ou mais longe de sua plena realização: uma
idéia reguladora (Kant) é o que faz a diferença entre ter uma lanterna na popa do barco e
a luz de um farol em terra: no primeiro caso eu não chegarei em lugar algum, no segundo
eu sou conduzido à terra firme e ao convívio dos homens (que não sei também se é um
lugar muito adequado para se estar!).

Li certa vez, num relato de Primo Levi, a história de uma criança judia que estava sendo
torturada por médicos nazistas diante de seus pais e de outros adultos, quando alguém
pergunta baixinho a seu vizinho: “- Onde está seu Deus que não vê isso?”, ao quê o
vizinho responde “-Deus É esta criança!”. Deus então é uma idéia, idéia que deveria
metafisicamente nos orientar numa vida ética, aquela vida em que definimos normas
(ética normativa) para nos conduzirmos na vida prática (ética factual): diz respeito à nossa
relação com outros e o que devemos fazer de nós mesmos.

Houve uma época em que essas NORMAS vinham do Alto, lá do Monte Sinai, e eram
essencialmente proibitivas, definindo o quê não deveríamos fazer (Decálogo) de acordo
com a vontade de Deus, esperando que fôssemos obedientes e servis. Muito mais tarde a
origem das normas se desloca do Alto para “dentro” de cada um de nós: como um tribunal
interior dispondo de regras gerais e imperativas que dizem como devemos agir de acordo
com a razão, esperando com isso que sejamos autônomos e livres. Ora, nem Deus seria
teoricamente LIVRE para criar o que Lhe desse na cabeça! Mesmo o “incausado” (“Eu
sou o que sou!”) não se basta a si mesmo, precisa de um Outro que o adore, o tema, o
louve! ELE NÃO ERA LIVRE PARA NÃO CRIAR O HOMEM, e fazê-lo à “sua
imagem e semelhança”, o que não significa “igual” a Ele, “parecido” com Ele, mas um
ser de “CONSCIÊNCIA”. Era preciso que um homem “consciente” existisse para dizer
“-Deus há!”, sem o quê Ele permaneceria uma entidade solipsista, solitária, apenas
consciência-de-si: a condição de Sua existência para um Outro era a exigência primeira
para que Ele pudesse ser amado ou temido (modelo ético) e orientasse a vida (dos que Nele acreditam) a partir de certas regras (hoje profundamente adulteradas e
enfraquecidas, diga-se!). Aliás, a pergunta (agostiniana) “Se Deus é infinitamente Bom,
por que existe o Mal no Mundo?” (“resolvida” com a noção de Livre Arbítrio), tal
pergunta, repito, também não me parece adequada: Deus, como disse, é apenas uma idéia
reguladora que, como um farol, deveria nos orientar, mas nunca impediria de ficarmos à
deriva.

Seja como for, todos os massacres dos inocentes, todas as guerras religiosas, todas as
cruzadas contra os “infiéis”, todos os campos de extermínio, o genocídio dos Yanomâmis,
todas as Inquisições… foram cometidos por quem acredita Nele. Eu terminaria, meu caro
e gentil leitor, emulando Elie Wiesel (Prêmio Nobel da Paz de 1986) em seu discurso
quando Auschwitz foi reaberto à visita pública (1995): se há um Deus realmente
misericordioso, eu Lhe suplico que não tenha nenhuma misericórdia para quem planejou
e tentou executar o genocídio de nossos irmãos Yanomâmis, tentou destruir a cultura,
produziu fome, miséria e 800.000 mortes, alimentou a desesperança e o desamparo,
enfraqueceu a educação nacional e nutriu a violência entre nós. Nenhuma misericórdia.

Eis minha precária resposta, caro leitor, sob a forma de uma modesta e ateia oração!

(Para Edinar Baia e Ricardo Aléssio)