Freddy não quer morrer

Imagem mostra destruição causada pelo ciclone Freddy em Quelimane, MoçambiqueImagem mostra destruição causada pelo ciclone Freddy em Quelimane, Moçambique AFP PHOTO /UNICEF/Alfredo Zuniga

Eram dois meninos num entardecer de agosto. A luz, larga e lânguida, tinha uma cor de cobre, e uma tristeza que se foi aprofundando com o tempo, e à qual passei a associar, não sei bem por quê, os versos famosos de Langston Hughes: “Eu vi rios:/ Eu vi rios antigos como o mundo e mais velhos que/ o fluxo de sangue humano em veias humanas./ Meu espírito escavou-se fundo como os rios.”

O menino tinha 12 anos e estava apaixonado pela menina. A menina nunca soube disso.

Passeavam os dois, de bicicleta, ao longo de um estreito caminho aberto no mato, quando, olhando para cima, viram algo sair do interior das nuvens. Parecia um enorme organismo vivo, movendo-se lentamente através do crepúsculo, com a mesma elegância e a concreta certeza com que um tubarão se move no mar.

Não havia na sua presença ali, naquele lugar e naquele instante, nada de milagroso. Muito pelo contrário: o que quer que aquilo fosse era algo sólido, lógico; de uma coerência sem falhas. Era, enfim, inevitável.

Então iluminou-se todo, com a luz implausível das medusas, deu um salto e desapareceu. No instante em que se iluminou já deixara de me parecer coerente. No instante em que desapareceu, deixei de acreditar nele.

As bicicletas estavam caídas sobre o capim seco. Nós dois de pé, eu e a menina, ainda olhando o céu.

— Viste aquilo? — perguntei.

— O quê?!

— Aquilo…

— Não sei. Tu viste?

Regressamos às nossas respectivas casas, aos dias anônimos e triviais, e nunca conversamos sobre aquilo. Era como se tivéssemos visto algo que não devíamos. O tempo passou, como passa o tempo: alguns eventos fluindo mais velozmente do que outros, e outros não passando nunca. Aquela tarde, por exemplo, continua intacta. Tão intacta quanto um copo que nos escorrega das mãos, antes de se estilhaçar em mil ínfimos pedaços translúcidos, de encontro ao piso frio da cozinha.

O tempo passou e nunca mais soube dela. Até à tarde em que escrevo estas linhas. Estava no aeroporto de Nacala, em Moçambique, sentado junto à porta de embarque, lendo no celular notícias sobre o ciclone Freddy. Nascido na Austrália, Freddy atravessou todo o Oceano Índico, caiu sobre a grande ilha de Madagascar, e depois sobre Moçambique, e entrou no continente. Porém, ao invés de definhar e morrer, como normalmente ocorre com tempestades do mesmo tipo, Freddy voltou a entrar no mar, ganhou força e, pela segunda vez, atacou Moçambique. Freddy não quer morrer.

— Zé?!

Levantei os olhos e vi diante de mim uma mulher alta, elegante, de cabelos muito brancos, que se derramavam pelos ombros numa cascata de luz. Ergui-me e abracei-a, mas só descobri quem era quando voltou a falar:

— Sempre que leio alguma notícia sobre ti penso naquela tarde.

Olhei-a com um espanto tão sincero que ela quase acreditou em mim:

— Que tarde? — perguntei.

Ficamos em silêncio, sentados um ao lado do outro, imensamente um ao lado do outro, enquanto uma funcionária da companhia aérea chamava os passageiros para o embarque; enquanto os passageiros passavam por nós e embarcavam; enquanto a vida prosseguia o seu curso misterioso e implacável.