Quando criança, o jornalista e escritor Ignácio de Loyola Brandão teve uma infância mágica no interior de São Paulo, cenário onde se passa a história de “Os olhos cegos dos cavalos loucos”, lançado no início do mês. Quadragésimo primeiro de sua carreira, a obra escrita em primeira pessoa é uma confissão ao avô paterno José Maria.

Livro é uma confissão ao avô do autor
Por Jéssica Oliveira
Parte da história se passa na primeira década do século passado, em Matão, cidade vizinha a Araraquara (SP). Marceneiro, seu avô fazia móveis diferentes para cada pessoa. Nessa época ele viu a foto de um carrossel numa revista e decidiu que faria um igual. “Não havia eletricidade. As ferramentas eram manuais, primárias. Ele ia no bosque, derrubava uma árvore, levava puxada por boi, preparava a madeira e tentava fazer os cavalos”, conta Brandão.
Quando só faltavam os olhos, o avô seguiu o conselho de Margarida, tia-vó de Brandão, de usar bolinhas de gude para cada animal. “Ele comprou de várias cores. Verdes, a tia Margarida dizia ‘os cavalos da floresta’, azuis, ‘os cavalos do mar’, vermelhos, ‘os cavalos fogosos’, e as brancas, porque tinha acabado as coloridas, ‘os olhos dos cavalos cegos’”, explica.
Pronto, o carrossel visitou cidades vizinhas e logo se tornou sucesso na região, atraindo pessoas por onde passava. Um dia o carrossel pegou fogo e só sobraram os olhos dos cavalos, guardados numa caixinha vermelha na oficina do avô. Mas, décadas mais tarde, sem saber de nada, Brandão perdeu as bolinhas numa brincadeira de criança.
“De tempos em tempos meu avô abria a caixa para falar das bolinhas de vidro, dos cavalos, dos olhos do cavalo, daquele período feliz dele, da minha avó, das minhas tias e do meu pai, que tinha uns cinco anos. E eu não entendia nada. Quando ele descobriu a caixa vazia ficou muito mal, ficou triste, teve febre, parou de trabalhar por uns dias”. Preocupado com a saúde do avô, Brandão não conseguiu assumir a culpa. Quando o avô melhorou, a avó e a tia cederam aos questionamentos dos netos e contaram toda a história. Brandão continuou calado.
Num Natal, seu avô que, além dos móveis, também fazia os brinquedos dos filhos e netos, de acordo com sua personalidade e gosto, não fez o de Brandão, mas deu a ele a caixinha vermelha. “‘Para você guardar as coisas importantes da sua vida’. Foi com um olhar de cumplicidade, meio que dizendo ‘eu te perdoo’. Ele soube que era eu, nunca falou. Só que eu não entendi que ele já tinha me perdoado naquele momento. E eu queria escrever essa história”, conta.
Mais algumas décadas se passaram até que essa história fosse da memória de Brandão para a ponta de seus dedos. “Quis escrever para pedir desculpas ao meu avô. Fiz 30 anos atrás uma primeira versão. Fiz umas sete, oito ou dez, tudo ruim, mas aquilo continuava remoendo na cabeça”.
Crédito:Editora Moderna

O escritor demorou 30 anos para colocar a história no papel
A história só “saiu” em 2013, quando ele e Marina Colasanti viajavam pelo Paraná para uma série de debates promovida pelo Sesc. Em Guarapava, alguém da plateia pediu que cada um contasse uma história para encerrar a conversa.
“Me deu uma coisa assim, comecei a contar do meu avô e a história foi saindo, saindo. Quando eu terminei, vi que tinha gente com lágrimas dos olhos. Eu falei ‘a história está pronta’. Naquela noite eu comecei a escrever à mão num caderno que eu sempre levo”, lembra.
Para ele, o livro, apesar de conter um episódio vivido por uma criança, não é infantil, mas para todas as idades. “Eu acho que cumpri o que eu queria com o livro. Lancei para o público e para o meu avô que está vendo isso”, diz ele que tem a caixinha vermelha até hoje.