Brennand: digressões de um gênio

Carol Botelho          Por CAROL BOTELHO 

LHOEudes Santana 1

Foto: Eudes Santana

A longa barba branca, os óculos e a bengala não escondem a idade avançada. O artista Francisco Brennand completou 87 anos  neste dia 11/6.  Fomos pessoalmente desejar feliz aniversário e ficamos com o presente: uma entrevista exclusiva com o grande artista. De tão encantada com a conversa, esta repórter que vos escreve nem viu a hora passar, ouvindo atentamente suas digressões sobre arte, futebol, Recife, existência, ser humano, sexo… Só interrompi o papo porque tinha o malvado do deadline me puxando para a realidade.

Mas voltando  a Francisco, que homem encantador! A beleza física ostentada na mocidade, após quase nove décadas, já se foi.  Mas ficou uma empolgação de menino na oratória da própria vida e do mundo que conheceu. Brennand é um artista inspirador não somente pela obra, mas também pelas palavras. “Sou um pintor que escreve”, disse Brennand. Recluso e introspectivo, ele raramente sai de casa. Diverte-se trabalhando diariamente, lendo e escrevendo em seu diário. Essas anotações, aliás, estão prestes a se tornarem públicas com uma publicação prevista para breve.  Por enquanto, deixemos que ele fale:

DESANIVERSÁRIO

“Existe um neologismo usado em Alice Através do Espelho, de Lewis Carroll: desaniversário. É justamente o que eu sinto. Comemorar o aniversário é um hábito que tem relação com o calendário. Consolida o poder da criatura humana, além de ser uma oportunidade de chamar atenção apenas para si. A verdade é que não fui habituado a comemorar aniversário. Quando criança, estudei em colégio interno e não havia festa”.

Orlando Azevedo

RECLUSO E INTROSPECTIVO

“Nasci no Engenho São João, aqui na Várzea. Desde criança, vivi longe da cidade. Eu e meus irmãos não frequentávamos festas, não sabíamos dançar, o que é um erro social gravíssimo. Mas andei muito a cavalo e aprendi a nadar no rio. Passei grande parte da vida escolar em colégio interno porque meu pai queria nos criar sem as benesses da casa. Isso me fez uma pessoa mais introspectiva, propensa ao devaneio, algo necessário ao artista. Graças a essa introspecção, descobri o mundo novo e fantástico em que vive o artista. Atualmente, não saio de casa. Mas não sou avesso às pessoas. Nunca me neguei a conversar com ninguém. As pessoas vêm aqui na oficina e tenho paciência de explicar as coisas, tirar fotografias. Não me recuso a nada. Chego à velhice sem nenhum preconceito”.

VELHICE

“A idade coincide com o que a natureza predetermina. Nem bondosa, nem maldosa, a natureza simplesmente prepara as pessoas. Elas começam a enxergar e escutar cada vez menos… O pintor francês Jean-Auguste Ingres costumava dizer: ‘a minha velhice me vingará’. Passei muitos anos me perguntando como um homem velho se vinga de si mesmo. E descobri: um velho não precisa disfarçar nem mentir. As mulheres, por exemplo, se preocupam demais em manter a juventude. Mas essas coisas de cirurgia plástica têm valor de competição que impossível de vencer do ponto de vista da natureza. O que importa é o existencial”.

NASCIDO E CRIADO NO MEIO DA ARTE

“Quando criança, folheava a Bíblia, as ilustrações de Dom Quixote e revistas francesas dos meus pais. Ficava maravilhado! E meu pai colecionava pinturas e porcelanas chinesas. Nasci dentro do mundo da arte e a resposta estava dentro de mim. Não veio da família Brennand, formada por ingleses comerciantes. Veio do lado da família Lacerda de Almeida, que era poeta e desenhava. Eu só fazia caricaturas dos padres que não gostava. Fiz curso de pintura na Europa, aos 20 anos”.

Helder Ferrer

SER HUMANO E A AUTO-INSPIRAÇÃO

“O homem persegue a si próprio. Está sempre querendo transformar tudo em forma humana. Um exemplo: temos a mania de olhar para as nuvens e enxergar nelas formatos humanos”.

ARTE CONTEMPORÂNEA

“O pintor italiano Carlo Levi dizia que ‘o futuro tem um coração antigo’. Não há nada de novo. Ao jovem é necessário se julgar na crista da onda, pensar que o atual é sempre melhor do que o antigo. É um processo de encantamento permanente que dá significado à existência. Sem isso, não haveria motivo para sorrir”.

ARTE, ELITISMO E DEMOCRACIA

“Há um descompasso entre uma elite cultural e o sentimento popular propriamente dito. Por isso não me importo se os meus painéis em edifícios serão preservados. Se forem, é porque tiveram importância para as pessoas. Fiz uma imagem do Padre Cícero no caminho para a oficina que ninguém mexe. A arte está no coração dos homens”.

Eudes Santana 2

PINTURA E ESCULTURA

“Achava que arte se resumia à pintura. Mas quando morei em Paris, aos 20 anos, Cícero Dias me levou para ver esculturas de Picasso. Foi quando me dei conta de que a escultura era uma arte muito importante. O artista francês Paul Gauguin também pintava e fazia cerâmica. Nasci numa fábrica de cerâmicas. É uma arte primitiva pela sua própria natureza. Sou um escultor com coração de pintor”.

RECIFE E PRESERVAÇÃO

“Nessa discussão sobre o Cais José Estelita, ninguém menciona o Museu das Cinco Pontas, o Bairro de São José e o porto. Não estou tomando partido, mas acho saudável se pensar na cidade como um todo. A indústria automobilística tomou conta de tudo. É o bezerro de ouro, um falso deus, como diz a Bíblia”.

RELIGIÃO

“Não sou religioso. Mas sem o elemento sagrado, o homem não existe. Há um mistério na perfeição que encontramos no mundo como é feito. O nosso corpo é inacreditável, perfeito. Somos cor de rosa por dentro!”

EROTISMO

“Conheço muito sobre literatura erótica. O escritor norte-americano Henry Miller não poderia ser mais cru, mas é sexual. Muito mais do que aquele best seller 50 Tons de Cinza.  O livro Bonjour Tristesse, de Françoise Sagan, com bem menos páginas, vale mais. Acho que a linguagem sexual é privilégio da criatura humana. E o perigoso do sexo é a fala. É uma linguagem perversa e transgressora. É bobagem separar a sexualidade do homem em categorias como hetero, homo, trans, metro. Essa classificação corta a grandeza da sexualidade. ‘O sexo, mais do que a morte, deixa o homem diante de uma perplexidade insanável’, dizia o historiador Arnold Toynbee. Definir a sexualidade é o mesmo que descobrir os mistérios insondáveis da alma humana.