CRÔNICA DO DOMINGO

ONDE ESTÃO OS NEGROS?
18 de dezembro de 1967

     Por Nelson Rodrigues 

Lembro-me de Crime e castigo e vejo Raskolnikov, o assassino. Houve um momento em que, após a morte das velhas, ele precisou voltar ao local do crime. Passou pela rua, pela porta e, se não me engano, subiu a escada. A partir de então, até os criminosos de O Dia e da Luta Democrática fazem o mesmo. Quando se livram do flagrante, eles voltam, sim, ao local do crime, batidos por não sei que nostalgia hedionda.

Pois eu também volto a Guimarães Rosa, como se ele fosse a vítima, e eu o seu Raskolnikov. Eis o meu pânico: — que aqui se instalasse, em torno de sua figura e do seu nome, a unanimidade. Meu Deus, o formidável artista não podia virar um Pacheco. Nem teríamos o direito de erigir-lhe uma estátua do “Brasil chorando o gênio”. Era preciso que algum pardal desgarrado sujasse, liricamente, a sua testa de bronze.

Dei graças quando veio o Cony e abriu uma racha na apoteose crítica e unânime. Disse ele ou, por outra, repisou uma velha opinião: — “É o novo Coelho Neto!”. Simultaneamente, em conversa com Hélio Pellegrino, o Mário Pedrosa falou também em “Coelho Neto”. Reynaldo Jardim explodiu: — “Um bolha! Um bolha!”. Em seguida, volta o Cony e, embora reconhecendo o “grande escritor”, apanha, a mãos ambas, na obra do Rosa, não sei quantas frases “acacianas”.

Ótimo, ótimo. A unanimidade tinha uma escandalosa goteira. E Guimarães Rosa seria um pobre-diabo se não suscitasse uma única e escassa dúvida. Vocês se lembram de uma frase rosiana, que mereceu uma imprensa enorme. Se não me falha a memória, é assim: — “O homem morre para provar que viveu”.

Imediatamente, o Cony pôs a boca no mundo: — “Acácio, Acácio!”. Se alguém dizia isso, o morto não era tão cadáver, respirava literariamente. (Mas ninguém fez, que eu saiba, o grande elogio de Guimarães Rosa, ou seja, o elogio de sua torre de marfim. Num belo artigo, Antônio Callado a negou. Mas é inútil resistir à evidência estarrecedora. Vou usar uma expressão de minhas crônicas esportivas: — a “torre de marfim”, em Guimarães Rosa, é o óbvio ululante. Obsedado como um Flaubert, estava mais interessado na cadência de uma nova frase do que em todo o Vietnã. Outros estilistas vão babar seus pileques nos botecos ideológicos da madrugada. Ele, nunca. E por que duvidar da torre de marfim se ele próprio a confessava, sem nenhuma pusilanimidade? Foi por vezes acaciano? Ai daquele que não teve o seu momento de Acácio. De vez em quando, somos Acácios e somos Pachecos. E confesso: — tenho medo, não dos que negam Guimarães Rosa, mas dos que o admiram. Há um certo tipo de admiração que compromete ao infinito.

Quem não se lembra da visita de Sartre ao Brasil? Há quem diga: — “A maior inteligência do século”. Um gênio, um gênio. Não admira, pois, que tenha feito, entre nós, um sucesso de Frank Sinatra. Não sei se de Frank Sinatra ou de Sarrasani, quando de sua primeira audição. Ah, Sartre! Nas suas conferências a platéia o lambia com a vista. Lambia sim, e explico: parecíamos, ao ouvi-lo, uns trezentos cachorros velhos. Pois um dia, se não me engano na ABI, Jean-Paul Sartre respira fundo e diz o seguinte: — “O marxismo é inultrapassável”. Eu estava lá e vi o efeito. A nossa semelhança com um cachorro velho aumentou consideravelmente. E por que disse ele isso? Porque olhava para a gente, como se nós fossemos um horizonte de cretinos.

Ali, eu descobria que há admirações abjetas. Mas esse “marxismo inultrapassável” é uma opinião de torcedor do Bonsucesso. Nada impede que dentro de quinze minutos o marxismo seja vilmente ultrapassado. Seria iníquo falar em Pacheco, em Acácio. Torcedor do Bonsucesso ou mais: — Luvizaro. Eis o nome certo, o nível exato: — Luvizaro. Naquele momento, “a maior inteligência do século” era um Luvizaro.

Já que falamos de Sartre, continuemos nele. Uma noite, lá foi ele, com a Simone de Beauvoir de namorada, ao apartamento de um colega. Era o mesmo desprezo. Olhava para os presentes como quem diz: — “Que cretinos! Que imbecis!”. Em dado momento vem a dona da casa oferecer-lhe uma tigelinha de jabuticabas. O Sartre pôs-se a comê-las. Mas, coisa curiosa. Ele as comia com certo tédio (não estava longe de achá-las também cretinas, também imbecis). Até que, na vigésima jabuticaba, pára um momento e faz, com certa irritação, a pergunta: — “E os negros? Onde estão os negros?”. O gênio não vira, nas suas conferências, um mísero crioulo. Só louro, só olho azul e, na melhor das hipóteses, moreno de praia. Eis Sartre posto diante do óbvio. Repetia, depois de cuspir o caroço da jabuticaba: — “Onde estão os negros?”. Na janela um brasileiro cochichou para outro brasileiro: — “Estão por aí assaltando algum chauffeur”.

“Onde estão os negros?” — eis a pergunta que os brasileiros deviam se fazer uns aos outros, sem lhe achar a resposta. Não há como responder ao francês. Em verdade, não sabemos onde estão os negros. E há qualquer coisa de sinistro no descaro com que estamos sempre dispostos a proclamar: — “Somos uma democracia racial”. Desde garoto, porém, eu sentia a solidão negra. Eis o que aprendi do Brasil: — aqui o branco não gosta do preto; e o preto também não gosta do preto.

Alguém poderia dizer a Sartre, sem violentar a verdade: — “Temos aí um negro, um único negro, o Abdias do Nascimento”. E, de fato, que eu saiba, é o nosso único negro confesso e radiante de o ser. A cor, em Abdias, é uma perene tensão dionisíaca. Digo isso e volto à minha carteira da escola pública. Quando me vi diante da diretora, da papada da diretora, comecei a tremer. Eis o meu pavor: — que me expulsassem por causa dos piolhos e das lêndeas.

Passei o resto da aula da cabeça baixa. A professora obrigou-me a ficar sozinho num banco (os outros sentavam-se de dois em dois). E eu me sentia um pequenino leproso. Depois veio o recreio. Lá vou eu com a minha banana. Comecei a chupá-la e todos os olhos me perseguem. Vi o menino que levava sempre sanduíche de pão com ovo. (Ainda agora, quando me lembro, como pão com ovo para me resgatar da humilhação da banana.) Mas falei de Guimarães Rosa, Sartre, Luvizaro e dos negros do Brasil. Eis o que eu queria dizer: — quase no fim do recreio estava eu no fundo do pátio. E, de repente, vem uma pretinha lá da minha aula. Pára diante de mim, ri para mim. Olha para um lado, para outro e para trás. Estávamos sós, maravilhosamente sós. Seu riso não tem os dentes da frente. Diz baixinho: — “Eu também tenho piolhos, lêndeas”.
[18/12/1967]

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *