Não se antevê nenhuma razão para que o Parlamento Europeu não disponha do poder de escolher e decidir quando e onde se reúne.
1. Hoje mesmo, lá para o fim da tarde ou início da noite, é debatido no plenário do Parlamento Europeu (PE), em Estrasburgo, o relatório sobre a “localização” da respectiva sede. É bem sabido que um dos temas que mais agita as opiniões públicas nacionais, quando elas se dão conta da existência do PE, é o tema da “dupla” (mais exactamente, “tripla”) sede desta assembleia.
Uma pergunta repetidamente posta aos deputados europeus vem a ser a questão de saber (ou, ao menos, esclarecer) se o PE “funciona” em Bruxelas ou em Estrasburgo. E, quando se apercebem de que o PE se reúne durante três semanas em Bruxelas e de que, na semana restante, se transfere, com armas e bagagens, para Estrasburgo, logo começa o clamor e a indignação (altamente reforçados, diga-se, nestes cinco anos de crise financeira e económica). Nas ditas três semanas em que há reuniões de comissões e de grupos parlamentares, o PE está alojado em Bruxelas, próximo das outras duas instituições políticas da União: a Comissão e o Conselho. Já na semana que sobeja, o PE instala-se em Estrasburgo para o decurso das sessões plenárias. Nessa semana, viajam todos os deputados, uma enorme quantidade de funcionários do PE e dos grupos parlamentares, um número significativo de assessores. E viaja quase sempre a Comissão, acompanhada de muitos dos seus funcionários, pois ela – dispondo do direito de iniciativa legislativa e respondendo “politicamente” perante o PE – tem de participar activamente nos trabalhos parlamentares. E, de modo bem mais rarefeito, viajam ainda os dignitários do Conselho, desde o responsável pela “presidência rotativa” até, muito espaçadamente, ao presidente do Conselho Europeu.
2. Numa semana, portanto, e para ir à sede legal – a sede segundo os Tratados –, viajam no corredor Bruxelas-Estrasburgo uns largos milhares de pessoas. Largos milhares que, por não residirem na cidade, alimentarão os hotéis e darão de comer aos restaurantes alsacianos. O custo para a União Europeia desta dupla sede andará, segundo o relatório, entre os 156 e os 204 milhões de euros anuais (consoante se seja mais optimista ou mais pessimista). O custo logístico e burocrático é, obviamente, tremendo. E se se houver em conta que hoje não há ligações eficientes de transportes (designadamente, aéreos) a Estrasburgo, o dispêndio de tempo em deslocações é manifestamente desproporcionado. Um deputado que saia do continente português demora entre 2h e 2h30 a chegar a Bruxelas. E deveria demorar sensivelmente o mesmo a aterrar em Estrasburgo. Mas a verdade é que, na melhor das hipóteses, demora cerca de 7h. E quem diz um português, diz um finlandês ou diz um grego. O desperdício de tempo e até o desgaste implicados por estas longas travessias aconselham a concentração da actividade parlamentar numa só sede. De resto, a tudo isto se soma ainda o custo ambiental de uma duplicação aparentemente desnecessária.
Este tipo de argumentos – absolutamente pertinente – fez escola e tem vindo a coleccionar cada vez mais adeptos. Não só nas opiniões públicas, mas também nas fileiras dos membros do PE. As últimas votações que, de modo indirecto ou lateral, contestam a divisão dos trabalhos do PE por duas cidades alçam já a dois terços dos deputados. Em favor da solução da dupla sede (e, em especial, da cidade de Estrasburgo), quase já só militam franceses, alemães e luxemburgueses. O argumento financeiro, insuflado pela generalização das políticas de austeridade, parece, pois, levar a palma sobre todos os outros.
3. Creio todavia que, por muito atraente que seja tal argumentário, ele não se atém ao essencial. E o essencial, apesar de a questão aparentar ser ou estritamente simbólica ou estritamente prática, prende-se directamente com os fundamentos políticos e constitucionais da União. Por isso mesmo, ao longo destes meses, na Comissão de Assuntos Constitucionais, lutei por uma agenda para este tema. Em primeiro lugar, o debate deve abstrair da concreta localização, não demonizando nem diabolizando qualquer uma das hipóteses. Em segundo lugar, deve focar-se no princípio da sede única. Em terceiro lugar, e este é já um argumento político de tomo, o local escolhido deve privilegiar as funções de controlo e de interacção com as restantes instituições da União. Quer como órgão legislativo, quer especialmente como órgão de controlo político, o PE não deve ser “afastado” do epicentro das decisões políticas, sob pena de isso implicar uma “menorização”. Seja a nível nacional, seja no plano europeu, tenho pugnado sempre pelo maior grau de descentralização. Mas ela pode realizar-se através dos tribunais supremos, dos bancos centrais, das grandes agências administrativas e reguladoras independentes. Já no que concerne aos órgãos a quem cabe o indirizzo politico, seja de um Estado nacional, seja da União, deve prevalecer um regime de “proximidade existencial” que facilite a interacção institucional.
4. Mais importante ainda – ponto a que hei-de voltar e que só parcialmente foi acolhido no relatório – é o reconhecimento de que o Parlamento, enquanto instituição da União, goza de um poder de “auto-organização”, à maneira do velho Organisatonsgewalt da Teoria do Estado alemã. Se o PE é o representante dos cidadãos e dos povos da União, se ele é expressão de uma legitimidade democrática única, não se antevê nenhuma razão para que não disponha do poder de escolher e decidir quando e onde se reúne. É, justamente, auto-investido nessa capacidade, na boa tradição da “convention” inglesa, que o PE deve operar uma ruptura constitucional. E, mesmo vulnerando a letra dos Tratados e a vontade centrípeta dos Estados, assumir o estatuto constitucional inerente, a caminho da sua Glorious Revolution. Desta falarei ainda para a semana.
pb