Pelo ineditismo, o caso do menino Marcelo, de 13 anos, será amplamente estudado, e citado, por séculos. E os envolvidos, hoje, na elucidação da chacina da família Pesseghini não escaparão de um julgamento da posteridade.
A antropóloga Yvonne Maggie escreve um belo comentário, mas me parece importante informar, a idade dos criminosos citados, desde que fez uma análise comparativa.
O camponês francês Pierre Rivière, em 3 de junho de 1835, aos vinte anos, assassinou a golpes de foice sua mãe grávida de sete meses, Marie Anne Victorie; sua irmã de 18 anos Victorie Rivière, e seu irmão de sete anos, Jules Rivière. Leia a psicóloga Luciana Mal.
Febrônio Índio do Brasil é o mais famoso serial killer brasileiro. Nasceu em 14 de janeiro de 1895. Teve uma vida de andarilho, tendo entre 1916 e 1929, dezenas de passagem pela polícia por fraude, chantagem, suborno, furto e vadiagem. Em 1920, escreveu o livro “Revelações do Príncipe do Fogo”. Tudo indica que seus assassinatos começaram depois dos 27 anos. Confira
Quem matou a família Pesseghini?
por Yvonne Maggie
Em São Paulo um menino de treze anos está sendo acusado de matar o pai, a mãe, a avó e a tia-avó e em seguida suicidar-se. Seus parentes não acreditam que Marcelo tenha praticado esses assassinatos e, logo depois, ido de carro até o colégio onde estudava, passando a manhã tranquilamente junto a seus colegas e, ao voltar para casa, tirar a própria vida, dando um tiro no peito usando a mesma arma com que matou a família.
Na rua só se fala nisso. Motoristas de táxi, vendedores ambulantes e o meu fisioterapeuta não acreditam nessa hipótese. Todos dizem que foi uma ação premeditada e que um menino de treze anos não seria capaz de matar tão friamente sua mãe, especialmente porque, pelo jeito que o corpo foi encontrado, tudo indica que ela pedia de joelhos para não ser morta.
Eu gosto de ouvir o que as pessoas falam, sou antropóloga. Como um menino de treze anos executa a família e vai para a escola assim tão simplesmente? Será que um jovem dessa idade tem capacidade de usar uma arma? Será que tem a frieza de praticar tal ato? Muitas foram as perguntas feitas, imediatamente respondidas pelos mesmos que as haviam formulado: “Claro que não foi o menino! O pai e a mãe eram policiais da Rota e está na cara que foi uma vingança encomendada, coisa de profissionais.”
Em meio a uma vida tão cheia de histórias terríveis que se repetem, de violência ligada às drogas e a traficantes sanguinários, a um mundo dominado pelas milícias, ninguém, em sã consciência, elimina a hipótese de que as mortes foram perpetradas por gente que queria eliminar o casal de policiais, vingar-se matando toda a família e ainda colocando a culpa no adolescente.
No sábado, uma amiga, especialista em violência urbana, me perguntou se eu acreditava que o menino poderia ter praticado uma coisa tão bárbara. Fiquei um tempo calada e conjecturei: “Não sei os detalhes, a polícia ainda não conhece todos os fatos e a perícia ainda não se pronunciou. Fica difícil falar, mas crimes hediondos como este acontecem”.
Todos nós ficamos muito chocados quando um fato faz cair por terra nossas verdades mais caras, como a inocência infantil. Acreditamos que crianças não pensam, não fazem nada premeditado e têm a alma virgem. Mas sabemos que crianças e jovens podem matar sem qualquer explicação pautados por uma lógica misteriosa.
Li um livro, há muitos anos, sobre um crime tenebroso ocorrido na França do século XIX, que me impressionou e marcou minha vida. O título, Eu, Pierre Rivière, que degolei minha mãe, minha irmã meu irmão (sic), é a frase que inicia o memorial do jovem assassino. O livro, organizado por uma equipe coordenada por Michel Foucault, reúne as peças do processo e faz parte de um projeto maior de análise das relações entre a psiquiatria e a justiça penal.
Em 1835, Pierre Rivière, um rapaz menor de idade, depois de degolar sua mãe, grávida de seis meses e dois irmãos a golpes de foice, vagou pela floresta por dias alimentando-se de raízes e frutos, longa peripécia relatada em seu diário. Quando finalmente foi preso, recebeu sentença de morte, o suplício dos parricidas, comutada pelo rei e substituída pela prisão perpétua. Pierre Rivière suicidou-se.
No dossiê do “caso Rivière”, a verdadeira guerra entre os discursos jurídicos, médicos, de aldeões, do prefeito, do vigário e do próprio acusado foi analisada pela equipe de Foucault. Segundo esta equipe, o memorial do criminoso foi escrito para chamar a morte, pois o adolescente queria ser preso e enforcado pelos atos escabrosos que cometera. Em seu texto o assassino, em cuja beleza uns viram uma prova de razão (e daí o motivo para condená-lo à morte) e outros um sinal de loucura (daí a necessidade de encarcerá-lo por toda a vida), explica o motivo que o levara a degolar sua mãe, sua irmã e seu irmão: queria livrar seu pai do sofrimento que lhe era imposto pela mulher. A irmã era aliada da mãe nas constantes brigas do casal. O assassino também justifica que matou o irmão menor, que o pai amava, porque assim o velho Rivière não sofreria com sua condenação e morte, pois preferiria vê-lo morto depois da tamanha maldade que praticara contra o pequeno inocente.
Hoje parece evidente o lugar da psiquiatria em diagnosticar a doença mental do criminoso e confiar sua sorte a uma instituição psiquiátrica. Mas o caso Rivière foi o início de um processo que culminou com o nascimento da medicina psiquiátrica e da utilização de seus conceitos na justiça.
Antes dessa verdadeira guerra de discursos, o crime era o alvo do julgamento. Não havia a noção de circunstâncias atenuantes. Em geral, o assassino era visto, no tribunal, como alguém que agira movido por forças malignas, pelo demônio, ou por trazer em si a maldade.
A partir de então o exame psiquiátrico foi-se tornando comum para todos os que cometem crimes de sangue até ser institucionalizado. As circunstâncias atenuantes, o fato de o acusado ser ou não consciente do seu ato, alienado, permitiram um novo discurso de verdade sobre culpa e responsabilidade. A pena, não se dá apenas pelo resultado do exame do crime, mas das circunstâncias que levaram a pessoa a agir desse modo. O criminoso não é mais visto como um enviado do diabo, ou enfeitiçado, mas como alguém fora de suas faculdades mentais.
No Brasil, o caso mais emblemático é o de Febrônio Índio do Brasil, acusado de haver matado, com requintes de crueldade, um jovem rapaz a quem teria seduzido, no Rio de Janeiro dos anos 1920. Preso e julgado incapaz penou o resto de sua vida em um manicômio judiciário, mesmo tendo reiteradas vezes afirmado ser inocente. Morreu aos 89 anos no manicômio sendo a pessoa que cumpriu a mais longa sentença no sistema judiciário brasileiro na época. Febrônio foi o primeiro caso em que a ciência médica interferiu em uma decisão judicial no Brasil.
A história do menino Marcelo pode estar no rol dos crimes relatados acima: um jovem alienado, sem consciência de seus atos, que cometeu parricídio. Mas estamos no Brasil, em 2013, e em nossa sociedade já familiarizada com ações de barbárie, a maioria das quais não esclarecidas, o mais acertado seja mesmo dizer que o menino foi mais uma vítima como seu pai, sua mãe, sua avó e sua tia-avó. Mortos, como muitos dizem, por vingança contra o casal que era policial do primeiro batalhão da polícia militar de São Paulo, a Rota – Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar.
Uma ação violenta, quase banal nos dias de hoje, que teria passado despercebida caso não tivesse o cruel assassino usado um teatro macabro, um teatro para iludir, colocando a culpa em um menino de treze anos que, ainda por cima, deu cabo da própria vida.


