Marina Lacôrte
Correio Braziliense
Uma pesquisa recém-publicada no periódico internacional Environment International, sob coordenação da pesquisadora brasileira Carolina Panis, da Universidade Estadual do Oeste do Paraná, em parceria com a Universidade de Harvard, mostrou que pelo menos 542 pessoas desenvolveram câncer entre os anos de 2014 e 2017 no Paraná por conta da contaminação da água por agrotóxicos. O levantamento foi feito nos 127 municípios produtores de grãos do estado e mostrou que 97% deles estão com a água que abastece seus moradores contaminada com resíduos dessas substâncias.
A publicação do artigo científico se dá em meio a discussão no Congresso em torno do que a sociedade civil tem chamado de Pacote do Veneno, o antigo PL 6299/2002 da Câmara e que circula agora no Senado como PL 1459/2022.
RETROCESSO TÓXICO – Depois de ter sido aprovado às pressas no plenário da Câmara dos Deputados, onde parlamentares ruralistas usaram a pandemia como oportunidade para aprovar medidas indigestas para a população, o Pacote do Veneno retornou ao Senado para apreciação final.
No entanto, o projeto que saiu da casa com apenas dois artigos, agora volta revogando toda a lei atual de agrotóxicos (7082/1989), excluindo dispositivos essenciais de proteção à saúde como a expressa proibição da aprovação de substâncias cancerígenas.
“O consumo da água brasileira é extremamente insalubre. Se você olhar esses números, o padrão europeu de segurança é de 0,1 parte por bilhão. No Brasil, o glifosato é de 500 partes por bilhão. Em nenhum lugar do mundo você acha agrotóxico nessa quantidade de água. Se esse projeto [Pacote do Veneno] no Senado for aprovado vamos ter uma lista maior de produtos carcinogênicos no cultivo de alimentos como soja e milho”, afirma Panis.
ATALHO PERIGOSO – Por determinação do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, o projeto circula em apenas uma comissão da Casa, a de Agricultura e Reforma Agrária (CRA), que atende majoritariamente aos interesses do agronegócio.
Pacheco tem ignorado uma série de pedidos para que a medida passe também pelas comissões que tratam dos assuntos de maior relevância relacionados ao PL, como meio ambiente, saúde e direitos humanos, indo na contramão do compromisso que fez perante artistas, movimentos e organizações, e parlamentares no Ato pela Terra, em março.
Entre os argumentos dos defensores do projeto está, é claro, a questão da fome. Alegam que uma menor burocracia trazida pelo PL permitiria a aprovação mais ágil de agrotóxicos necessários para a produção de alimentos, representando, consequentemente, aumento no volume dessa produção.
OUTRA REALIDADE – No entanto, a fome no país só vem crescendo, mesmo com recordes das safras agrícolas no Brasil. Em 2022 chegamos a 33 milhões de brasileiros que passam fome, um crescimento de 57% em comparação a 2021.
Segundo a FAO, a existência da fome não é uma questão de quantidade, já que 30% de toda a comida produzida no mundo é desperdiçada anualmente. Isso escancara o que também já foi afirmado pela ONU: que a necessidade de usar agrotóxicos para produzir mais alimentos e acabar com a fome é um mito.
Agrotóxicos não são um mal necessário. Há décadas que incentivos e subsídios agrícolas são direcionados majoritariamente para a produção de commodities, sistemas que mais consomem agrotóxicos, especialmente para as monoculturas de soja, milho e cana, que não estão voltados para atender diretamente a uma demanda alimentar e que tem implicado inclusive na diminuição das áreas de plantio fundamentais para a população brasileira, como arroz, feijão, mandioca e trigo, e no aumento do preço dos alimentos.
AINDA HÁ TEMPO – Em outras palavras: com estímulos e incentivos adequados e redirecionados, é possível alterar nossa matriz de produção e garantir a segurança alimentar e nutricional. É escandaloso continuar “ofertando” para brasileiros venenos que a Europa e os Estados Unidos negam à sua população. Essa medida não traz modernidade e busca fazer algo bastante perigoso no meio jurídico, que é tratar como regra aquilo que deveria ser exceção.
O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, e os demais senadores não podem ignorar a ciência que tem se manifestado dia após dia contra a medida, bem como mais de 20 órgãos públicos.
O Pacote do Veneno não cabe no caminho que precisamos traçar para mitigar as crises socioambientais, em especial alimentar e climática, garantindo o bem-estar das gerações futuras. A transição agroecológica é mais urgente do que nunca.