Ameaças ao Telegram mostram que o STF precisa receber muitas aulas de informática

TRIBUNA DA INTERNET | Bolsonaro chama cerco ao Telegram de “covardia” e  indica que estuda medidas acautelatórias

Ilustração reproduzida do Arquivo Google

Madeleine Lacsko
Gazeta do Povo

Acabei de ler a decisão sobre o banimento do Telegram. Estava quase dando um duplo twist carpado de tanto rir quando lembrei que eu também pago para o pessoal escrever aquilo. Um humorista profissional teria feito melhor e muito mais barato. Fora isso, eu trabalhei no STF dois anos, tenho orgulho disso. Senti como uma sabotagem pessoal.

Explico. Justo hoje de manhã eu estava me achando por causa dessa experiência no mundo jurídico. Tive a honra de fazer uma live sobre a necessidade de uma nova Constituição, pelo aniversário do professor Modesto Carvalhosa. Participou o ministro aposentado do STF, Francisco Rezek. Mandou recado e ligou depois o ministro aposentado Eros Grau, meu preferido. Conversei com o professor Ives Gandra Martins, a professora Beyla Fellous e o professor Luciano Castro, em Iowa. Recebemos o professor Ignacio Berdugo, da Universidade de Salamanca.

ESTAVA NAS NUVENS – Eu não tinha nem roupa para o evento, estava nas nuvens. Agora me vem essa decisão de “bloquear” o Telegram e eu não posso mais contar vantagem porque trabalhei no STF. Engraçadinhos do mundo digital já me mandaram piadas. Aliás, fizeram questão de mandar pelo Telegram. Como é que eu vou perdoar uma coisa dessas

Umas semanas atrás, fiz um longo artigo explicando todos os detalhes das experiências de países que proibiram o Telegram. Nele eu discuto a questão de estar ou não sujeito às leis brasileiras, responder ou não às nossas autoridades e mostro também como a Alemanha fez com que o Telegram efetivamente se submetesse às leis do país.

Neste artigo não vou falar de contradições como o Telegram ser a principal fonte de notícias dos bombardeios na Ucrânia. Falo apenas das 18 páginas da decisão em si e suas consequências, se fosse realmente “banir” o Telegram.

QUEM SERIA PUNIDO – Ao ler a decisão, a gente entende que só serão punidas as pessoas e empresas que utilizarem VPN (significa Rede Privada Virtual, do inglês Virtual Private Network, é uma rede de comunicações privada construída sobre uma rede de comunicações pública) e sistemas assemelhados para burlar a proibição e acessar o Telegram. Mas como é possível determinar se fizeram isso? Não é. Os dados são protegidos, não existe acesso a eles para saber se houve ou não tentativa de acesso ao Telegram.

Também são bem populares, principalmente entre pessoas do meio digital, o acesso via TOR. É um projeto de software de código aberto, desenvolvido inicialmente pelo Laboratório de Pesquisas Navais dos Estados Unidos. TOR quer dizer “The Onion Router” e garante navegação completamente anônima, ou seja, também usar o Telegram no Brasil.

Ser código aberto significa que qualquer pessoa que sabe programar pode ser uma parte do projeto. A rede TOR funciona por meio dos chamados relays, utilizadores voluntários que disponibilizam suas conexões para que outros usuários naveguem anonimamente.

SEM CONEXÃO DIRETA – Não há, no entanto, uma conexão direta entre quem quer navegar de forma anônima e o relay. Cada conexão exige no mínimo 3 relays: 1. O de entrada, que dá acesso à rede TOR; 2. O intermediário, que conecta o relay de entrada ao de saída; 3. O de saída, que manda a requisição original do usuário de origem ao destino

Atualmente, há pelo menos 6 mil relays pelo mundo. São pessoas e empresas que voluntariamente disponibilizam suas conexões para que outras pessoas, desconhecidos ao redor do planeta, possam navegar de maneira anônima.

Todos eles e todos os usuários que se conectam a eles em tese usam subterfúgios para burlar o bloqueio do Telegram. Boa sorte ao pobre funcionário público encarregado de cobrar multa de todo esse pessoal.

FICA TUDO ANÔNIMO – É possível saber quais indivíduos e empresas no Brasil usam serviços de VPN e TOR. Não é possível, no entanto, saber o que eles fazem exatamente depois que entram nessas redes, fica tudo anônimo.

Que tal uma aula de informática para o pessoal do STF? Compreendo perfeitamente o argumento de que empresas devem obedecer as leis brasileiras e respeitar as instituições brasileiras para operar no Brasil. Dar murro na mesa vai fazer com que o Telegram respeite as leis e instituições brasileiras? Infelizmente não.

Ocorre que a conta da aposta não será paga pelo ministro nem pelo STF, será paga pelo cidadão comum. O Telegram não é o principal aplicativo de mensagens do Brasil nem tem no Brasil uma operação que abale significativamente suas operações mundiais. Muitos cidadãos brasileiros, no entanto, dependem do Telegram para colocar o pão na mesa.