Portugal: a ferida que não quer cicatrizar

A polémica na Bienal de Arte de Veneza confirma a dificuldade de Portugal de assumir o seu lado negro (com ou sem trocadilhos)

A artista Grada Kilomba foi preterida pelo júri para representar Portugal em Veneza
# EXCLUSIVO SITE, JOÃO MELO

* O autor escreve segundo o acordo ortográfico e a norma angolana da língua portuguesa, em formação.

Portugal tem uma ferida que se recusa a cicatrizar: a memória do colonialismo e o racismo. Se nos lembrarmos que, ao contrário de outras potências coloniais europeias, o derrube do colonialismo lusitano, pelo menos em África, também ocorreu graças à participação do novo regime português saído da Revolução dos Cravos, não podemos deixar de observar que essa dificuldade é, de certo modo, contraditória. A mesma confirmará que o chamado “espírito de abril” (referência à data da insurreição militar que derrubou o governo colonial-fascista chefiado por Marcelo Caetano, no dia 25 de abril de 1974) se tem erodido com o tempo. O relativo crescimento da extrema direita no país é a expressão mais notória dessa erosão.

Tal crescimento – diga-se – não é mero acaso. A verdade é que as promessas revolucionárias do 25 de abril foram rapidamente capturadas pelas forças conservadoras e o desenho do novo regime acabou por resultar, poucos meses depois da queda do anterior, numa grande conciliação centrista, crescentemente consolidada, com todos os seus méritos e defeitos. Se o principal mérito foi impedir uma guerra civil no país e a eventual instauração de uma “ditadura de esquerda”, como alegam as elites dominantes locais, um dos seus principais defeitos foi, precisamente, o estado de negação da sociedade portuguesa em relação ao passado colonial.

Na realidade, o passado em questão continua ainda hoje a ser glorificado, não apenas envergonhadamente, mas, por vezes, de modo oficial e chocante, como o confirmam os atos de homenagem a militares conhecidos pelos seus atos torcionários durante o conflito militar entre o regime português e os movimentos independentistas africanos de 1961 a 1974, a que Portugal chama “guerra colonial” e os últimos, “guerra de libertação nacional”.

A memória do colonialismo está estruturalmente ligada ao racismo. Eis o ponto que interessa ao presente artigo: o colonialismo (que alguns continuam, de uma maneira ou de outra, a glorificar) acabou, mas o racismo continua. Só para mencionar um dos muitos aspetos dessa problemática, o lugar dos negros na sociedade portuguesa está muito longe de ser plenamente reconhecido, apesar de mouros, berberes e africanos estarem presentes em Portugal desde o século 7, tendo-se misturado ou não com os restantes grupos (compreensivelmente, a primeira hipótese é a mais comum). O processo acentuou-se com a escravidão, mas nem todos os negros que chegaram a Portugal a partir do século 15 eram escravos; alguns eram homens livres e até nobres. Mau grado esse passado, a visibilidade atual dos negros portugueses (mais escuros ou mais claros) e o reconhecimento do seu papel na comunidade é muito reduzido.

Ou seja: Portugal continua com dificuldades de assumir o seu lado negro (com ou sem trocadilhos). A recente polémica com a representação do país na 59ª Bienal de Arte de Veneza, marcada para o presente ano, veio mais uma vez, como se isso fosse necessário, confirmá-lo.

Como foi amplamente noticiado não apenas em Portugal, mas também em outros países, incluindo o Brasil, a favorita para representar o país na referida bienal era a conhecida e internacionalmente conceituada artista Grada Kilomba, uma negra clara de origem angolana (ou “mestiça”, para os padrões dominantes, quer portugueses quer angolanos). A decisão do júri, contudo, acabou por não ser essa, sabendo-se que tal aconteceu por causa da votação de um dos três membros do corpo de jurados, cuja nota, altamente inferior às dos restantes, desequilibrou o resultado final, impedindo Kilomba de ser escolhida.

Para se ter uma ideia efetiva desse desequilíbrio, a artista recebeu uma classificação de 20 pontos por parte de dois dos integrantes do júri e de apenas 12 por parte do último jurado, o que acabou por ser o decisivo. Quem conhece como, normalmente, funcionam esses tipos de júris em todo o mundo sabe que essa disparidade não é comum nem normal. Tudo indica que um dos jurados atribuiu propositadamente uma nota demasiado baixa a Grada Kilomba com o intuito de impedir a sua nomeação.

O colonialismo (que alguns continuam, de uma maneira ou de outra, a glorificar) acabou, mas o racismo continua.

A pergunta inevitável é: por quê? Obviamente por se tratar de uma artista que é negra e é mulher, a esmagadora maioria das vozes que se levantaram, em vários pontos do mundo, contra Nuno Crespo, o jurado que desqualificou a sua candidatura, acusa-o de racismo e misoginia. A suspeita tem razão de ser, por causa, digamos assim, da “ordem das coisas” (patriarcal, racista e homofóbica) em que vivemos. Porém – reconheça-se – não é fácil de demonstrar factualmente, pois, como é natural e entendível, em momento algum Crespo avançou argumentos desse teor para justificar a sua recusa em aceitar o projeto artístico de Kilomba. Ele não é doido, para fazê-lo.

Talvez por causa dessa impossibilidade de “provar” o eventual racismo e misoginia por detrás da atitude de Nuno Crespo, outras vozes tentaram como que desculpá-lo. Uma delas foi a do escritor João Pereira Coutinho, colunista habitual da Folha de S. Paulo, que, em artigo publicado no último dia 4 de janeiro – Feridas abertas –, declarou: “É possível rejeitar uma obra de arte de uma artista negra sem ser por racismo”. Para chegar a essa conclusão lapalissiana, ele ancora-se nas justificações de Crespo para rejeitar a obra de Grada Kilomba, as quais, diz, “em nenhum momento resvalam para o racismo ou para a misoginia”.

Ora, ora. João Pereira Coutinho estava mesmo à espera de ver argumentos racistas e misóginos na declaração do jurado português? Como antigo historiador de arte, ele deveria no mínimo ter desconfiado de algumas das justificativas de Crespo, como “falta de singularidade e consistência”, “não é inovador”, etc., que cita no seu artigo na Folha para desvalorizar as acusações de racismo e misoginia feitas contra o mesmo. Como bem observa Miguel Mesquita, curador e co-fundador do PARTE – Portugal Art Encounters, numa carta aberta publicada em 31 de dezembro no Diário de Notícias (Lisboa), esses juízos não são “argumentos de especialista”. Mesquita, que foi aluno de Nuno Crespo, considera que este “não desenvolveu a sua apreciação da proposta [de Grada Kilomba] recorrendo ao seu conhecimento e especialização para legitimar a sua posição”. Sugiro a Coutinho que leia com atenção esse texto.

Como escrevi atrás, as suspeitas de racismo e misoginia que impendem sobre o jurado português, embora sejam plenamente justificáveis, podem, à primeira vista, ser difíceis de provar factualmente. De igual modo, também não será fácil demonstrar a suspeição de amiguismo que recai sobre a sua atitude (Miguel Mesquita afirma, no seu texto publicado no Diário de Notícias, que, ao desqualificar Grada Kilomba, a principal favorita desde o início, Crespo queria favorecer um outro concorrente). Mas há algo na sua declaração que é passível de interpretação rigorosa e objetiva. Trata-se da sua afirmação de que o tema do projeto que Grada Kilomba pretende apresentar em Veneza “não é inovador”, pois, segundo ele, já tem sido objeto de suficiente debate na sociedade portuguesa. É falso.

O projeto da artista negra portuguesa, designado A ferida, aborda três crises contemporâneas: crise climática; crise dos direitos humanos; e militarização das relações humanas. Pergunte-se: será mesmo que relacionar artisticamente essas três crises fundamentais “não é inovador”? Sintomaticamente, Nuno Crespo centra a sua apreciação no tema do racismo (tópico da crise dos direitos humanos), defendendo que inclui-lo numa representação portuguesa “não é relevante”. A verdade é que, além do debate racial na sociedade portuguesa ser escasso, o tema jamais foi abordado em qualquer representação de Portugal em Veneza.

Ato falho. Eis como a psicanálise classificaria aos argumentos de Nuno Crespo para inviabilizar a apresentação da obra de Grada Kilomba em Veneza.

JOÃO MELO

Nasceu em Luanda (Angola), em 1955. É escritor e jornalista. Morou no Brasil de 1984 a 1992 como correspondente de imprensa. Tem mais de 20 livros publicados, entre poesia, conto e ensaios, em Angola, Portugal, Itália, Cuba e Brasil, onde publicou a coletânea de contos Filhos da Pátria (Record, 2008). Pode ser acompanhado no Twitter e no Instagram.