“Fiz e faria de novo”, confessou o réu, que acabou sendo absolvido durante a audiência

Juiz Federal Danilo Fontenelle Sampaio

Danilo Fontenelle, um juiz de verdade, absolveu o réu

Frederico Vasconcelos
Blog Interesse Público

Sob o título “Um anjo e seus brinquedos”, o artigo a seguir é de autoria de Danilo Fontenelle Sampaio, juiz federal da 11ª Vara do Ceará:

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UM ANJO E SEUS BRINQUEDOS

Vou comentar um caso que ocorreu comigo e nunca saiu da minha cabeça. Sou juiz federal há mais de 27 anos e especificamente juiz criminal há vinte, e esta talvez tenha sido a mais marcante de todas as audiências que fiz.

O caso era de peculato, previsto no art. 312 do Código Penal, e indica a conduta do funcionário público apropriar-se de dinheiro, valor ou qualquer outro bem móvel, público ou particular, de que tem a posse em razão do cargo, ou desviá-lo, em proveito próprio ou alheio, contando com pena de reclusão de dois a doze anos, e multa.

O caso era de um servidor dos Correios, de uma agência em uma pequena cidade do interior do Ceará, que fora denunciado por ter se apropriado de uma verba destinada a um dos programas sociais da época. Era o chamado “ticket do leite”, precursor do bolsa família e correlatos, onde famílias carentes cadastradas iam mensalmente às agências dos Correios e recebiam tais tickets para serem trocados no comércio por leite ou alimentos.

SUMIRAM OS TICKETS – Os Correios eram utilizados como distribuidores por terem maior capilaridade nas cidades menores e com população mais carente. E a testemunha de acusação foi o auditor dos Correios que narrou os fatos com precisão, ou seja, ao chegar de surpresa na pequena agência, que possuía como funcionários o réu, que era o gerente, um auxiliar e um carteiro, logo percebeu a falta de certa quantia de tickets, o que foi prontamente confessado pelo réu.

O protocolo dos Correios, à época, era de afastamento sumário do servidor e submissão do mesmo à processo administrativo disciplinar, o que foi feito e culminou, em menos de 30 dias, com sua demissão.

O auditor fez questão de consignar que o réu sempre fora funcionário responsável e dedicado, sendo surpresa ter constatado tais fatos e obtido a confissão imediata do acusado.

INTERROGATÓRIO – A defesa não tinha arrolado testemunhas, de maneira que passamos logo ao interrogatório. Durante a fala do auditor, o réu permaneceu calado e curvado sob seus ombros, com a cabeça baixa e o rosto quase encoberto, e foi desta forma que assumiu a cadeira destinada aos depoimentos.

Fiz sua qualificação de maneira protocolar. Colhi seus dados pessoais de nome, filiação, endereço, estado civil e ocupação atual, informando-o que poderia permanecer calado, caso preferisse.

Ele, um senhor dos seus cinquenta anos, magro, vestido com simplicidade, rosto marcado e mãos trêmulas, respondeu tudo com voz fraca mas clara, apenas titubeando ao dizer-se divorciado e desempregado.

ERA VERDADE – Li a denúncia, e pude notar que a descrição dos fatos o fez vibrar em calafrio, com leve manear negativo da cabeça. Fiz a primeira pergunta incisiva e necessária. “Os fatos narrados são verdadeiros?”

Em quase três décadas como juiz, posso dizer que mesmo o culpado com todas as provas contra si sempre encontra uma maneira de minimizar os fatos ou sua participação, invariavelmente trazendo circunstâncias outras não existentes nos autos, alegações de fatos não documentados ou elementos diversos e desconexos.

Este réu, não. Após uma breve tomada de ar, disse, em um só fôlego: “Sim, doutor. Eu fiz o que aí está dito e faria de novo, afirmou com surpreendente firmeza”. O representante do Ministério Público Federal, sentado ao meu lado direito, se aprumou na cadeira. O réu repetiu, agora olhando-me diretamente nos olhos: “Sim, eu fiz e faria de novo”.

O QUE ACONTECEU – Enquanto me recuperava do efeito daquelas palavras que, a um só momento, aparentavam arrogância de um criminoso contumaz e contrastavam com a figura de um servidor exemplar, nas palavras da testemunha de acusação recém-ouvida, o réu continuou:

– Doutor, se eu puder contar tudo o que aconteceu, agradeceria muito.

– Claro, claro. O interrogatório é justamente para isso. Fique à vontade de falar.

– Doutor, eu entrei nos Correios aos vinte anos de idade. Hoje tenho quase 50. Minha vida toda foi ali. Eu adorava o que fazia e nunca, nunca doutor, cometi qualquer falha. Pode ver a cópia do meu processo administrativo aí. Não tem sequer uma advertência. Nada. Não tem nada de ruim na minha ficha. E pode até ver que tem elogios. Nos Correios a gente lida com confiança. Uma pessoa que coloca uma carta simples, por R$ 3,50, tem que ter a confiança que essa carta chegará ao destino. É muita confiança depositada nas costas da gente e todo mundo que trabalha nos Correios sabe disso.

O ÚNICO FILHO – E o réu prosseguiu a confissão: – Pois bem, Doutor. Só pude me casar quase aos 45. Minha esposa era 15 anos mais nova que eu. Tivemos muita dificuldade de termos filhos. Até que veio o Rafael. Foi uma alegria muito grande. Nosso primeiro filho. Só tivemos ele – disse, acrescentando:

Daí, doutor. Quando ele ia fazer cinco anos, adoeceu.

– Adoeceu?

– Leucemia.

– Isso realmente é muito triste, mas o que tem a ver com o caso?

O ANIVERSÁRIO – O réu contou que o menino estava internado há meses quando chegou a véspera do seu aniversário. Os médicos já não sabiam o que fazer e não davam mais esperanças de nada.

– E ele me pediu uns brinquedos. Nós já tínhamos gastado tudo com uns remédios que o SUS não fornecia, o aluguel estava atrasado, minha esposa não trabalhava. Só era o meu salário para aquilo tudo.

– E aí?

– Aí, doutor, eu tomei aquela decisão que me custou o emprego. Eu peguei mesmo uns tickets e troquei no comércio. Peguei o dinheiro e comprei os brinquedos que ele tinha me pedido. Eu pretendia devolver o dinheiro, doutor, mas tive o azar da fiscalização chegar e comprovar tudo.

COMO DEVOLVER – Perguntei se tinha realmente a intenção de devolver e como pretendia fazer. – Não sei, doutor, eu ia pedir emprestado a uns amigos ou até mesmo a um agiota, mas eu ia devolver, sim. Naquela hora exata minha cabeça não estava muito boa. Eu só queria comprar os brinquedos. Os problemas depois eu resolveria. Olhe, estão aqui as notas fiscais dos brinquedos. Pode conferir que bate quase com exatidão com a quantia que eu peguei de tickets. Eu ia devolver certinho. Só que não deu tempo. A auditoria chegou, constatou tudo e eu confessei.

O representante do Ministério Público Federal pegou as notas fiscais exibidas e começou a fazer as contas, comparando com o relatório do auditor.

Realmente os números eram quase exatos, sendo que, na verdade, o dinheiro apropriado era menor que o custo total dos brinquedos, pelo que se presume que o funcionário utilizou o que ainda sobrava de seus recursos para complementar a compra.

FARIA DE NOVO – E prosseguiu o réu: – Pois então, doutor. Foi por isso que eu disse que fiz e faria de novo. Pelo meu filho eu faria qualquer coisa. Faria o que fiz e até muito mais – disse com voz surpreendentemente doce.

Vi lágrimas tomarem seus olhos e, sem aviso maior, o réu irrompeu em prantos, curvando-se até quase a tocar na mesa com o rosto escondido pelas duas mãos em prece a tocar-lhe a fronte.

Todos que estavam na sala, servidores, defensor, advogados que aguardavam audiências posteriores, estagiários, alunos, eu e o representante do Ministério Público Federal mal respirávamos. Por alguns minutos, apenas seus soluços se fizeram ouvir.

AS FOTOS DO MENINO – Com as mãos tremendo, o depoente se serviu de um pouco de água. E, momentos após, continuou: – Aqui está a foto do Rafael com os brinquedos. São os mesmos das notas fiscais. Pode conferir.

O Ministério Público conferiu. A foto era de um menino sorridente, ligados a tubos em uma cama de hospital, e exibia carrinhos e bonecos indicados nas notas fiscais.

– E aqui está o atestado de óbito dele – disse, estendendo o documento – Ele morreu três dias depois do aniversário. Eu repito. Eu fiz e faria tudo de novo.

Soubemos depois que, após o enterro do filho, o depoente caiu em depressão, o que o levou a sequer contestar os fatos durante seu processo administrativo disciplinar. A depressão ainda se agravou pelo divórcio que se seguiu, cerca de um ano após todos os fatos, o que também o impediu de dar maiores esclarecimentos na Polícia Federal, quedando-se a confirmar a materialidade e a autoria.

COMPORTAMENTO HUMANO – Sabe-se que a economia é a ciência que estuda o comportamento humano diante da escassez de recursos, analisando o processo de tomada de decisões. Sabe-se, também, que a racionalidade econômica é a busca de satisfação ou benefícios em um mundo onde existem restrições e as opções são analisadas no sentido de gerarem mais satisfação, a um menor custo e com menos riscos.

Há casos, entretanto, em que informações imperfeitas ou assimetrias de informação ocorrem, prejudicando todo o processo decisório inicial, sendo certo que, com a correção delas, outras decisões podem ser tomadas.

O caso apresenta duas ordens de decisão a serem tomadas. O funcionário dos Correios estava na situação de escassez de recursos e tinha uma decisão a tomar: dava ou não dava os brinquedos para o seu filho doente?

ESCOLHA IMPERFEITA -A decisão pela aquisição dos brinquedos naquele que poderia (e acabou sendo) seu último aniversário, o levou a outra questão: como fazer para comprar, se não tinha dinheiro? A opção escolhida levou em conta uma informação imperfeita, ou seja, ele desconhecia que ocorreria uma auditoria de surpresa.

Sabe-se, no entanto, que as leis são feitas por pessoas e para pessoas. Nunca se pretendeu legislar para anjos ou pessoas imaculadas, que nunca errem, sucumbam às imperfeições ou jamais pequem.

É notório que o Estado tem o monopólio de dizer o que é justo, mas não existe mercado mais difícil de ser satisfeito. A finalidade da pena, diz-se, é punir e ressocializar. Qual tipo de ressocialização seria indicada para o depoente? Existia algo a ser ressocializado naquele pai?

MUITAS DÚVIDAS – Eventual punição satisfaria a qual propósito? Ensinar aos demais servidores dos Correios que, com os Correios não se brinca, ou algo assim? Seria realmente justo tomar o depoente como “exemplo” e assim o exibir à sociedade? Qual, na verdade, seria o exemplo que estaríamos dando? Qual, na verdade, o exemplo a ser dado?

O que se sabe, com segurança, é que os fatos jurídicos devem ser apreciados com base na humanidade de todos nós, e a empatia e a compreensão são elementos a serem levados em conta.

Até o relato do depoente, tanto os Correios, como a Polícia, o Ministério Público e eu mesmo, tínhamos informações imperfeitas e nossos julgamentos guardavam os mesmos matizes.

NOVO ENTENDIMENTO – O esclarecimento dos detalhes fáticos e a conferência dos dados apresentados em audiência nos fizeram mudar completamente de entendimento. Após o depoente se recompor, indaguei ao Ministério Público e ao defensor se ainda queriam fazer perguntas. Ambos declinaram.

Indaguei se estavam em condições de apresentar suas alegações finais naquele momento, o que foi assentido e realizado oralmente. Atendi aos requerimentos da acusação e defesa. A sentença de absolvição foi publicada em audiência.

Os Correios que cobrassem a quantia apropriada na área civil. Não recordo os elementos técnicos que usei para fundamentar a decisão. Na verdade, pouco importa se entendi a presença de estado de necessidade ou inexigibilidade de conduta diversa. O importante é que um anjo pode brincar sossegado no céu.