No mês seguinte à morte de Octavio Paz, há exatos 20 anos, seu amigo Carlos Fuentes prestou-lhe uma homenagem em forma de discurso na Feira de Livro de Buenos Aires. Entre outras coisas de caráter mais pessoal e emotivo, Fuentes sugeria que “o grande acerto de Paz foi dotar de pensamento a poesia e de poesia o pensamento. Contagiou sua prosa com relâmpagos metafóricos e sua poesia com lucidez discursiva. Talvez esta tenha sido sua singularidade, sendo, como todo criador, herdeiro de uma tradição”. Em seguida, o autor de Gringo viejo passava a enumerar exclusivamente poetas que teriam influenciado a escrita e o pensamento de Paz. No entanto, curiosamente, nada diz a respeito da outra parte da tradição que mencionou, a que teria contaminado a poesia do amigo com uma “lucidez discursiva”. Assim, aproveito-me da “lacuna” deixada para tentar ensaiar eu mesmo uma possível resposta — e o verbo “ensaiar” vem bem a calhar aqui: acredito que a outra filiação intelectual de Paz, patente em sua abundante e valiosa obra ensaística, remete à determinada vertente de uma tradição filosófico-literária de orientação humanista, por certo muito bem representada em língua castelhana por pensadores como Baltasar Gracián, Luis Vives, Miguel de Unamuno, José Ortega y Gasset, María Zambrano e, obviamente, também por um conterrâneo, o grande crítico e polímata Alfonso Reyes.
O autor de El laberinto de la soledad, vencedor do Prêmio Cervantes em 1981 e do Prêmio Nobel de Literatura em 1990, compreendia a atividade intelectual como uma espécie de drama da consciência, e encontrou no ensaísmo a forma mais adequada e pessoal de dar expressão às tensões entre o individual e o coletivo; os conflitos entre o escritor e a sociedade. Foi o próprio Octavio Paz quem atestou: “Tudo o que escrevo é autobiográfico” — e isso deve ser levado a sério por quem examina não somente a sua poesia, mas especialmente sua produção ensaística. O “eu” que se apresenta em cada ensaio não é um ente abstrato, como o cogito cartesiano, mas o indivíduo concreto, que pensa e sente o mundo, e se coloca a partir de sua intransferível singularidade, estreitando os laços entre o aprendizado conceitual e a própria vida.
Entre tantos temas explorados pelo escritor, o mais recorrente e importante foi, sem dúvida, a própria linguagem, investigada em toda sua complexidade: “a linguagem não é somente um fenômeno social, pois constitui, simultaneamente, o fundamento de toda sociedade e a expressão social mais perfeita do homem”. E essa complexidade se evidencia na constatação de que não somos somente seres criadores de símbolos: nós somos linguagem, pois é ela que nos constitui. Para Paz, a linguagem é um organismo vivo, e as palavras “são rebeldes à definição”; sua concepção de conhecimento resiste, pois, aos limites de uma visão exclusivamente racionalista e logicista, e tampouco se dobrava frente às pretensões cientificistas de diversas correntes teóricas hegemônicas em sua época. Não seria correto, contudo, classificá-lo como “irracionalista”: a crítica do ensaísta se dirige não à razão e à lógica, mas à mistificação delas, a partir da criação de uma ordem abstrata, fechada, sistemática e imutável como base essencial do universo. Distanciando-se de qualquer versão idealista de pensamento, Paz aceita que mesmo a nossa lógica mais “pura” é algo totalmente contingente, pois nasce, assim como a própria linguagem, de nossa interação cotidiana com o mundo. Entretanto, ainda que contingente e orgânica, a linguagem possui necessariamente uma estrutura lógica, sem a qual — reconhece o ensaísta — não poderia funcionar.
Em uma parte fundamental de El arco y la lira, escreve Paz: “As palavras se conduzem como seres caprichosos e autônomos. Sempre dizem ‘isto e o outro’ e, ao mesmo tempo, ‘aquilo e o de mais além’. O pensamento não se resigna; forçado a usá-las, uma e outra vez pretende reduzi-las a suas próprias leis; e uma e outra vez a linguagem se rebela e rompe os diques da sintaxe e do dicionário. Léxicos e gramáticas são obras condenadas a não serem terminadas nunca. O idioma está sempre em movimento, ainda que o homem, por ocupar o centro do redemoinho, poucas vezes se dê conta dessa incessante mudança”. É justamente a liberdade garantida pela retórica do ensaio que permite, àqueles que o cultivam, o uso de ferramentas poéticas como a metáfora e as analogias, além do discurso indireto, digressivo, subjetivo, circular… Um dos grandes valores dos ensaios do autor de Libertad bajo palabra reside em seu poder criativo e metafórico, na beleza sensual de suas imagens, em um tipo de rigor ao mesmo tempo intelectual e estético, que impressiona a inteligência e a sensibilidade do leitor. Em seus ensaios, portanto, literatura e filosofia não são adversárias, mas complementares: a autoconsciência linguística e a vontade de estilo se irmanam para dar conta de algo para o qual a argumentação filosófica tradicional, de viés racionalista, não está habilitada. O tipo de “verdade” procurada pelo ensaísta não tem a pretensão de ter uma validade coletiva, universal; contenta-se em testemunhar uma verdade existencial, retirada da vivência e experiência individual. Afinal, em última análise, são somente os indivíduos que concretamente existem, e não as categorias universais e as coletividades.
É tarefa estéril querer localizar o pensamento de Octavio Paz — principalmente aquele revelado em sua ensaística — dentro de uma teoria exclusiva ou de um único sistema filosófico, ainda que ele tenha sido influenciado por várias correntes teóricas e literárias de seu tempo. Sua obra reflete uma negação peremptória de esquemas, teorias e sistemas fechados de pensamento. E essa é outra evidência de sua filiação humanista: não encontramos nele o trabalho de um especialista, de alguém versado em uma determinada área do conhecimento. Em um mesmo texto seu, é comum a presença de vários temas entrelaçados, perspectivas diferentes em diálogo franco e mesmo contradições lógicas impensáveis dentro dos limites de um pensamento analítico. Em seus ensaios, não há a pretensão de se esgotar um tema ou de se estabelecer definições últimas: o importante é buscar — ensaiar — novos caminhos, novas formas de ver. Dizia Ortega y Gasset que o ensaio é “a ciência sem a prova explícita”; nesse gênero, não é necessário provar nenhum argumento de maneira definitiva, pois não se busca a certeza e nem a objetividade. A ânsia moderna, racionalista e cartesiana, por um saber apodítico (universal e necessário) é deixada de lado. O ensaísta se alimenta da constatação do caráter contingencial e provisório de nossa existência e de tudo aquilo que presumimos saber.
Numa referência a um de seus maiores mentores intelectuais, escreveu Octavio Paz: “Diz-se que Alfonso Reyes é um dos maiores prosadores da língua; é preciso acrescentar que essa prosa não seria a que é se não fosse a prosa de um poeta”. Tais palavras caberiam perfeitamente numa caracterização do próprio Paz, porque seus ensaios são também peças de um criador da linguagem, pensamento móvel de um poeta.