Após cinco anos e meio fechado e uma reforma que reconstruiu o prédio parcialmente destruído pelo fogo em dezembro de 2015, o Museu da Língua Portuguesa reabriu neste sábado, em São Paulo, com uma cerimônia para autoridades dos países de língua portuguesa. O Museu estará aberto ao público a partir de amanhã (1º). Além de autoridades paulistas, como governador João Doria, o secretário estadual de Cultura, Sérgio Sá Leitão, e o prefeito de São Paulo, Ricardo Nunes, comparecerem ao evento os ex-presidentes Fernando Henrique Cardoso e Michel Temer e os presidentes de Portugal, Marcelo Rebelo de Sousa, e de Cabo Verde, Jorge Carlos Fonseca.

Os ex-presidentes José Sarney, Fernando Collor de Mello, Luis Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff também foram convidados. Sarney não pode comparecer porque foi acometido por uma gripe. Lula e Dilma responderam ao convite com “cartas amáveis”, segundo Doria. Collor não se manifestou. O presidente Jair Bolsonaro também ignorou o convite.

— Infelizmente, ele preferiu passear de motocicleta em Presidente Prudente — disse Doria, em referência à “motociata” da qual o presidente participa neste sábado, no interior paulista.

Não foram poucas as alfinetadas ao governo federal ao longo da cerimônia. A começar pelo simbolismo da escolha de Fafá de Belém para cantar o Hino Nacional. A cantora paraense, como bem lembrou a mestre de cerimônia, a jornalista Adriana Couto, participou ativamente da campanha das “Diretas Já”, no fim da ditadura militar, e cantava o Hino Nacional nos comícios. Fafá também cantou o Hino Nacional Português e declamou um poema de Fernando Pessoa: “Ó mar salgado, quanto do teu sal/ São lágrimas de Potugal”. “A minha pátria é a minha língua”, bradou a cantora, o final de sua apresentação. Em seu discurso, Doria afirmou que, na língua portuguesa, encontramos “vacinas” contra o “negacionismo” e a “pós-verdade”: “vida”, “trabalho”, “ciência”, democracia”, “liberdade”.

Ao final da cerimônia, o Museu da Língua Portuguesa recebeu a Ordem de Camões, honraria criada, em junho, pelo governo português, para homenagear pessoas e instituições que trabalham pela amizade dos povos lusófonos e divulgação de seu idioma. “Uma língua é feita de milhões de almas”, discursou o presidente de Portugal. “Aqui viemos para celebrar o futuro, pois é ele que nos desafia. Essa é uma celebração do nosso futuro, do futuro da nossa língua comum. E é em nome desse futuro que celebramos, agraciando o Museu da Língua Portuguesa com a Ordem de Camões.”

‘Língua solta’

O Museu da Língua Portuguesa reabre com a exposição “Língua solta”, que mistura obras de arte contemporânea assinadas por nomes como Arthur Bispo do Rosário, Leonilson e Jac Leirner com objetos de uso cotidiano que fazem referências à linguagem, como panos de pratos estampados com versículos bíblicos. O objetivo da exposição é mostrar como as palavras aparecem na arte tanto como marcadores de poder quanto como resistência.

A reforma do museu consumiu R$ 81,4 milhões, levou quatro anos e foi entregue oficialmente em 16 de dezembro de 2019, mas a pandemia impediu a volta integral das atividades. Com a reabertura do espaço, os visitantes podem acessar um mezanino localizado na torre do relógio da Estação da Luz e avistar o Parque da Luz e a região central de São Paulo. O mezanino foi batizado em homenagem do arquiteto Paulo Mendes da Rocha, falecido em maio.

O Museu passou por melhorias de infraestrutura para torná-lo mais seguro contra incêndios, como a instação de sprinklers (chuveiros automáticos). O acervo é totalmente virtual e está preservado em backups externos. O projeto para restaurar e readequar o espaço foi elaborado pelo governo de São Paulo em parceria com a Fundação Roberto Marinho. Além de recursos públicos, o orçamento vem de patrocinadores privados, como a EDP (empresa portuguesa de distribuição de energia elétrica), patrocinador máster, o Grupo Globo, o Grupo Itaú Unibanco e a Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp). Há apoios da Fundação Calouste Gulbenkian e do governo federal, por meio da Lei de Incentivo à Cultura.

‘Todes’ em guerra

Os dias anteriores à reabertura do Museu foram marcados por atritos entre o governo de São Paulo e federal. Sábado passado (24), no Twitter, o secretário Especial da Cultura, Mario Frias, chamou de vandalismo o uso do pronome neutro “todes” pela comunicão do Museu. “Tomarei medidas para impedir que usem dinheiro público federal para suas piretas ideológicas”, disse Frias, que há tempos repete que o dinheiro gasto nas reformas dos museus da Lingua Portuguesa e do Ipiranga vem dos cofres federais. “Se o governo paulista se comporta como militante, vandalizando nossa cultura, nao o fará com verba federal.” Frias se referia a uma publicação do Museu, nas redes sociais, que afirmava que a instituição era “um espaço aberto à reflexão, à inclusão e um chamamento para todas, todos e todes os falantes, ou não, do nosso idioma”.

Na terça-feira (27), o decreto que alterou a Lei Federal de Incentivo à Cultura determinou que Estados e municípios precisarão de autorização para inaugurar, divulgar e promover projetos que utilizaram recursos da Rouanet, como é o caso do Museu da Lingua Portuguesa. Na coletiva que se seguiu a cerimônia de inauguração, Sá Leitão disse que o governo paulista não recebeu qualquer notificação referente à inauguração ao Museu.

— Em São Paulo, nós amamos, valorizamos e promovemos a arte, a cultura, a língua, portuguesa, a democracia e os valores da civilização — afirmou Sá Leitão, que foi ministro da Cultura de Temer. — A Constituição brasileira ainda está em vigor e um de seus princípios basilares é o pacto federativo, que estabelece todas as atribuições dos entes federativos. Aqui em São Paulo, nós valorizamos a Constituição e o pacto federativo.

Já Doria aproveitou para anunciar que vai solicitar ao Ministério do Turismo que a Cinemateca Brasileira seja administrada conjuntamente pelo governo e pela Prefeitura de São Paulo. Na segunda-feira (2), Sá Leitão deve encaminhar a proposta ao governo federal. Na última quinta-feira (29), um incêndio destruiu um galpão da Cinemateca, na Zona Oeste de São Paulo.

— A Cinemateca já deveria há muito tempo ter sido transferida para a gestão do município ou do Estado. Dada a circunstância (do incêndio), se justifica ainda mais — afirmou. — A Cinemateca está aqui, é um ente público e cultural muito presente na vida da cidade e do Estado se São Paulo, embora ela atenda todo o país. Aqui, eu posso assegurar, nós cuidamos melhor da cultura do que o governo federal.

Segundo o governador e o prefeito de São Paulo, Ricardo Nunes, também presente na cerimônia, a Cinemateca sob gestão paulista era o sonho de Bruno Covas, prefeito da capital falecido em maio. Nunes afirmou ainda ter solicitado à Defesa Civil que fizesse vistorias no galpão incendiado e na sede da Cinemateca, na Zona Sul da cidade.