RIO — Basta uma rápida olhada nas listas de livros mais vendidos dos últimos meses para perceber. De “A garota do lago” a “Bridgerton”, de “Lupin” a “O conto da aia”, os rankings trazem tantos livros transformados em séries de sucesso que fica fácil confundi-los com algum catálogo de streaming. E vice-versa.

Na era da transmissão digital, o empurrão extra que o mercado editorial recebia dos filmes parece agora ter ficado a cargo das séries. E vale tanto para livros que já são sucesso, como os romances históricos apimentados de Julia Quinn, cujas vendas subiram 500% após a estreia de “Bridgerton” na Netflix, quanto para edições que dormiam no fundo do catálogo das editoras. É o caso de “A verdade sobre o caso Harry Quebert”, de Joël Dicker, esquecido depois de seu lançamento em 2014, e que ganhou uma nova vida com a série homônima no Globoplay seis anos depois. As vendas cresceram 126% desde a estreia da produção.

O fenômeno vem provocando uma mudança na mentalidade dos próprios escritores, que passaram a ver as séries como mais benéficas para a sua obra do que os longas-metragens, até então o Santo Graal das adaptações.

— Pelo menos no meu caso, um filme de uma hora e meia ou duas horas não me favorece tanto quanto um formato de vários episódios, porque meus enredos são complicados — diz Harlan Coben, que tem quatro livros adaptados para a Netflix, em entrevista ao GLOBO. — Isso absorve o propósito de um escritor como eu muito melhor do que a maneira clássica de um filme — diz.

Tainá Müller em "Bom dia, Verônica", da Netflix Foto: SUZANNA TIERIE / SUZANNA TIERIE/NETFLIX
Tainá Müller em “Bom dia, Verônica”, da Netflix Foto: SUZANNA TIERIE / SUZANNA TIERIE/NETFLIX

Fenômeno em outros países, com mais de 70 milhões de exemplares vendidos , os livros de Coben nunca haviam repetido o mesmo desempenho comercial no Brasil. Até a estreia, em janeiro do ano passado, da série “Não fale com estranhos”, que a Netflix produziu a partir de um de seus romances. A procura pelo livro quase dobrou, de acordo com a Arqueiro, sua editora no país. Para Coben, o diferencial está no próprio formato das plataformas, que costumam lançar todos os episódios para assinantes em centenas de países ao mesmo tempo.

— Basicamente, o que o escritor busca hoje em dia é o formato série — diz Ana Luiza Beraba, fundadora da Film2b e da WePlot, empresas especializadas em gestão de direitos para adaptação no Brasil e na América Latina. — É uma tendência que já vinha e que aumentou na pandemia, com os cinemas fechados e o streaming se tornando a única opção. Há muitos casos de projetos que iniciaram com a ideia de um filme e no meio do caminho mudaram para série.

As séries propiciam um outro nível de imersão nas histórias, permitindo explorar mais subtramas e personagens, acredita o escritor e roteirista Raphael Montes. No ano passado, ele e Ilana Casoy adaptaram para a Netflix o romance “Bom dia, Veronica”, que haviam escrito sob pseudônimo em 2016 (e as vendas do livro subiram 1.508% após a série).

— É verdade que sempre fui um autor que gosta de desenlaces surpreendentes e também de deixar ganchos entre os capítulos. São recursos muito usados nas séries para prender a atenção do espectador e fazê-lo maratonar. Nesse sentido, meus livros realmente se encaixam bem no streaming — diz Raphael.

Cena de "Doutor Castor", do Globoplay Foto: Divulgação
Cena de “Doutor Castor”, do Globoplay Foto: Divulgação

Os números confirmam o efeito streaming. O Grupo Editorial Record tem registrado um aumento de 20% nas vendas de títulos que ganharam adaptações. O livro de reportagem “Nos porões da contravenção”, de Chico Otávio e Aloy Jupiara, que serviu de fonte para a série documental “Doutor Castor”, chegou a dobrar suas vendas mensais após a estreia da produção no Globoplay. A editora notou ainda um crescimento acima da média de “Se eu fechar os olhos agora”, romance de Edney Silvestre, também transformado em série pela plataforma.

Já a HBO foi responsável por alavancar a carreira de “Objetos cortantes”, de Gillian Flynn (90 mil cópias vendidas) e “Território Lovecraft”, de Matt Ruff (25 mil), ambos da editora Intrínseca, que cresceram respectivamente 490% e 450% com as adaptações.

A mudança na forma como o público consome produtos audiovisuais fez as editoras a repensarem as suas campanhas de marketing. Antigamente, o lançamento de um livro adaptado para o cinema explorava ao máximo um curto período em que ele ficava em cartaz. Hoje é diferente: as produções permanecem no catálogo das plataformas, gerando um interesse mais duradouro. Um exemplo é a série “Mindhunter”, sem novos episódios desde 2019, e que ainda assim continua a gerar boas vendas para o livro de John E. Douglas e Mark Olshaker que a inspirou (85 mil exemplares até o momento). Maior sucesso da Netflix, “O gambito da rainha” estreou em outubro de 2020 — e só agora o romance original, de Walter Tevis, está sendo lançado no mercado brasileiro, com uma tiragem inicial de 12 mil exemplares, considerada alta pela sua editora, a Arqueiro.

— As editoras já não estão mais sendo tão pautadas pelo calendário das estreias do cinema — conta Heloiza Dao, gerente de marketing da Intrínseca. — Uma série como “Mindhunter” fica lá disponível por tempo indeterminado e o público vê quando quer.

No Brasil, a chegada de novas plataformas, como HBO Max e Disney+, tem aquecido a concorrência de adaptações. Todos querem uma produção local para chamar de sua e fortalecer laços com o público nacional. Em busca de uma boa história, voltam-se muitas vezes para livros já consolidados.

— Os players querem séries nativas nas quais a audiência brasileira, que é gigantesca, possa se reconhecer — diz Gustavo Mello, cofundador da produtora Boutique Filmes, que fechou com o Globoplay a produção de “Rota 66”, clássica reportagem de Caco Barcellos dos anos 1990, a ser adaptada como série de ficção. — A busca é por projetos que tenham DNA brasileiro.