‘Foi uma sequência de absurdos’, diz biógrafo de Roberto Carlos dez anos após censura

Paulo Cesar de Araújo prepara novo livro sobre o Rei e negocia filme

Por Silvio Essinger – O GLOBO

RIO – Há dez anos e um dia, no Fórum da Barra Funda, em São Paulo, o pesquisador Paulo Cesar de Araújo era confrontado com seu ídolo e objeto de estudo no livro “Roberto Carlos em detalhes”, lançado meses antes, em dezembro de 2006. O cantor — figura das mais perenes da cultura popular brasileira — reivindicava a proibição da obra, em defesa do seu patrimônio: a sua própria história. Roberto sairia de lá com um acordo, formalizado com Araújo e a Editora Planeta, de que o livro seria proibido. E com um CD de Thé Lopes, nome artístico de Tércio Pires, juiz que presidira a audiência e pedira, ali, que o Rei avaliasse seu talento.

— A sensação foi que todo mundo tinha perdido a noção, foi uma sequência de absurdos — recorda-se Araújo, 55 anos.

Nos últimos dez anos, sua persistência para manter “Roberto Carlos em detalhes” nas lojas deu a partida a um processo que culminou, em 2015, na decisão do Supremo Tribunal Federal de que as biografias, mesmo sem autorização do biografado ou de seus herdeiros, não podem ser proibidas. Decisão da qual se beneficiam autores como Carlos Eduardo Drummond e Marcio Nolasco, que neste mês lançaram a não autorizada “Caetano — Uma biografia — A vida de Caetano Veloso, o mais doce bárbaro dos trópicos”.

Foram tempos em que Araújo percorreu o Brasil em mesas-redondas — quase sempre em torno da liberdade de expressão — e escreveu mais um livro sobre Roberto, “O réu e o rei: minha história com Roberto Carlos, em detalhes” (2014, Companhia das Letras), que deve virar documentário pelas mãos de Claudio Manoel e Micael Langer, de “Simonal — Ninguém sabe o duro que dei”. Enquanto busca solução legal para desfazer o acordo que impede a republicação de “Roberto Carlos em detalhes” (“A possibilidade é grande, mas a Justiça é lenta”, diz), ele escreve um terceiro livro sobre Roberto, mais centrado nas suas canções, com informações que ficaram de fora do primeiro volume e novas entrevistas.

— É a história com novos detalhes — resume. — Concluo agora uma trilogia e depois parto para outros projetos. No fim das contas, terei publicado três livros sobre Roberto, cada um com sua especificidade. E eu só queria fazer um!

MUDANDO DE ASSUNTO

Um desses “outros projetos” é um livro sobre “a moderna música brasileira pós-bossa nova”, tema de suas aulas de Comunicação e MPB na PUC do Rio. É a continuação natural de uma trajetória que iniciou em 2002, com a publicação, pela Record, de “Eu não sou cachorro, não”, estudo sobre o papel que os artistas bregas tiveram na resistência ao regime ditatorial brasileiro nos anos 1970. Livro que pôs na historiografia da MPB nomes como os de Odair José e de Paulo Sérgio, ele será reeditado ainda neste ano, com atualizações.

“Tenho uma relação profissionalmente saudável com meu objeto de estudo, com distanciamento para compreender suas limitações e contradições. Era melhor para o Roberto que eu ficasse com mágoa”

PAULO CESAR DE ARAÚJO
Escritor

Dez anos depois da audiência, ainda ecoam na cabeça de Araújo as palavras de Roberto Carlos voltadas para ele e os representantes da Planeta (“Vocês pensaram que poderiam fazer esse livro sem que eu autorizasse?”), e é bem nítida a sensação de impotência que experimentou na volta para o Rio, de ônibus, segundo relata. Ele também se lembra bem da defesa ao seu trabalho, poucos dias depois, expressada por Paulo Coelho em artigo na “Folha” (“Ali vi o sol reaparecer, eu não estava mais sozinho”). Mas raiva de Roberto diz não ter:

— Tenho uma relação profissionalmente saudável com meu objeto de estudo, com distanciamento para compreender suas limitações e contradições. Era melhor para o Roberto que eu ficasse com mágoa. Na audiência, vi que ele estava desinformado de muita coisa, ele sempre foi muito preservado.

Admirador de “Esse cara sou eu”, de 2012 (uma das raras canções inéditas que Roberto lançou na última década), o escritor diz lamentar que, aos 76, o cantor ainda esteja tão preocupado “com a parte empresarial e financeira” de sua carreira:

— Como o cara que compôs “As baleias” resolve fazer propaganda de carne? Ele é capaz, poderia ter aproveitado o tempo e feito outros “Esse cara sou eu”. Ou montar um show com as músicas que não costuma cantar ao vivo. O Roberto nunca ganhou tanto dinheiro quanto nesses últimos 15, 20 anos. Mas o que ele vai deixar para a história nesse período? O combate às biografias não autorizadas?

No próximo dia 27, Roberto volta a se apresentar em Vitória da Conquista. É a primeira vez que ele vai à cidade baiana desde 1973, ocasião em que o menino Paulo Cesar, sem dinheiro, viu de fora do ginásio o início do show. Desta vez, mesmo tendo condições de pagar, Araújo resolveu não ir:

— Se eu pudesse entrar numa máquina do tempo, eu iria é naquele show de 73 — diz ele, mais interessado, porém, em um tempo no qual uma biografia não autorizada é publicada. — Isso só mostra que nós viramos uma página desse capítulo das liberdades públicas no Brasil. Antes, o absurdo parecia natural. Agora, espero que outros autores escrevam sobre Roberto Carlos.