Democratas e republicanos se unem no Senado dos EUA contra ameaça tecnológica da China

As duas bancadas apoiam um projeto de fomento industrial para evitar a dependência do gigante asiático em setores críticos como a fabricação de microchips

Por María Antonia Sánchez-Vallejo
Nova York – Os dois lados do espectro político norte-americano criaram uma frente comum no Congresso para preservar a hegemonia dos Estados Unidos diante da competição tecnológica da China. Superando as agudas divergências habituais entre democratas e republicanos, as duas bancadas aprovaram nesta terça-feira no Senado, como questão de Estado, um amplo pacote legislativo que busca reduzir a dependência dos EUA em relação ao gigante asiático. A China é a prioridade número um do presidente Joe Biden, e a legislação pretende potencializar a indústria local para que os EUA sejam autossuficientes em produtos como os semicondutores, peças cruciais para a atividade do setor automotivo e telecomunicações. A iniciativa demonstra não só o objetivo estratégico de rebater a concorrência da China, mas também a intervenção do Governo na economia, execrada pelos republicanos até agora.
O projeto de lei inclui uma verba de quase 250 bilhões de dólares (1,26 trilhão de reais) que permitirá, entre outras ações, construir 10 fábricas de semicondutores ?cujo déficit desacelera a atividade industrial e ameaça a recuperação. O pacote superou no fim de maio uma votação preliminar no Senado com 68 votos favoráveis e 30 contrários, e nesta terça-feira obteve sinal verde definitivo com um resultado quase idêntico (68 x 32). A firmeza contra a China demonstrou ser a única bandeira que unifica um Senado onde os democratas contam com uma exígua maioria. O texto, de 2.400 páginas, deve passar agora à Câmara de Representantes (deputados) antes de ser sancionado por Biden.
A chamada Lei de Inovação e Concorrência dos EUA é de fato uma proposta bipartidária, promovida pelo senador democrata Chuck Schumer e seu colega republicano Todd Young. O projeto surgiu em fevereiro, quando Schumer, líder da maioria democrata na Câmara Alta, propôs a elaboração de uma bateria de medidas para fomentar o setor tecnológico, a indústria e a pesquisa como resposta aos desafios da China, com investimentos em semicondutores, inteligência artificial, robótica, computação quântica e outras tecnologias de ponta. O rascunho recebeu contribuições de seis comitês do Senado, o que mostra o consenso bipartidário após anos de marcada polarização ideológica.
Entre outras medidas, a lei destina 54 bilhões de dólares à indústria dos semicondutores, quase 17 bilhões a pesquisa e desenvolvimento para garantir as cadeias de fornecimento energético, e 10 bilhões para o sistema de aterrissagem humana da NASA; ao todo, há uma soma de 195 bilhões de dólares para tarefas de pesquisa e desenvolvimento. Uma iniciativa subjacente, ainda pendente de tramitação, planeja destinar mais 81 bilhões de dólares para financiar de 2022 a 2026 a Fundação Nacional de Ciências, uma agência governamental que é a nau-capitânia da inovação tecnológica no país.
“Neste momento os Estados Unidos recuperaram o controle e avançaram após vários anos ficando para trás, na melhor das hipóteses”, disse o senador Schumer no fim de maio ao portal Axios. O veterano democrata recordou nesta semana que os EUA destinavam até agora menos de 1% do seu PIB a pesquisa e desenvolvimento tecnológico, menos de metade que a China. “A legislação bipartidária será o maior investimento em pesquisa e inovação em gerações, o que permitirá aos EUA liderar o mundo nas indústrias do futuro”, afirmou ele nesta terça.
O projeto de lei também abre a porta a novas sanções contra Pequim por violações de direitos humanos em lugares como Xinjiang, berço da minoria uigur. Além disso, encarrega um novo estudo sobre a origem do coronavírus e propõe um boicote diplomático à próxima Olimpíada de Inverno, programada para 2022 na China. Inclusive autoriza uma verba específica de 300 milhões de dólares para rebater a influência política do Partido Comunista Chinês.
Não é casualidade que no mesmo dia da aprovação do pacote no Senado a Casa Branca tenha anunciado a criação de “uma força de choque”, liderada pela secretária de Comércio, Gina Raimondo, para rebater a escassez em curto prazo de semicondutores e outros materiais básicos nas cadeias de suprimento, ou seja, para combater a suposta concorrência desleal da China, à qual Washington atribui os problemas no abastecimento de insumos como os ímãs de neodímio, usados no setor automotivo e outras indústrias, e cujo fornecimento depende do país asiático.
A decisão de criar essa força de choque é o resultado de uma avaliação de setores essenciais ao longo de 100 dias. A investigação revelou quatro áreas especialmente sensíveis à interrupção do fornecimento: a fabricação de semicondutores; as baterias de grande capacidade, como as dos carros elétricos; os minerais raros; e os princípios ativos farmacêuticos. São produtos muito diferentes, mas com um denominador comum: a dependência de terceiros. Uma dependência que ficou clara na fase inicial da pandemia, com insuficientes equipamentos de proteção e materiais sanitários básicos monopolizados pela China.
A escassez de semicondutores é um fenômeno global, que não afeta apenas os EUA, e fontes do setor consideram que só será resolvida em meados de 2022, segundo especialistas citados na segunda-feira pelo jornal Financial Times. Com consequências geopolíticas de alcance desconhecido, Taiwan poderia se ver no olho do furacão da rivalidade sino-americana, dada a crescente pressão dos EUA para que a Taiwan Semicondutor Manufacturing Company, o fornecedor alternativo mais confiável, aumente sua produção, algo que a empresa considera que só será possível em 2023, apesar dos seus milionários planos de investir em uma fábrica em Phoenix (Arizona). Também o gigante norte-americano Intel anunciou recentemente um investimento de 20 bilhões de dólares em duas novas fábricas no mesmo Estado. Mas as estiagens que afetam tanto o Arizona como Taiwan são um sério entrave para o aumento da produção, dada a necessidade de água em abundância para fabricar chips.
O fato de Taiwan se tornar um hipotético ponto de ignição da rivalidade entre Pequim e Washington ajuda a virar definitivamente o foco da política externa da Casa Branca, enquanto solta lastro no Afeganistão e Iraque e se esquiva o quanto pode do conflito palestino-israelense, para não falar da situação da Venezuela, preferindo em vez disso mirar direta e quase unicamente a China e sua esfera de influência. Em torno dos diminutos microchips ressoam ecos da Guerra Fria elevados à enésima potência. “Mundo afora, os regimes autoritários sentem cheiro de sangue”, disse recentemente Schumer no Senado. “Acham que democracias como a nossa não podem se unir e investir nas prioridades nacionais, como faz um governo autoritário, centralizado e hierárquico [como o chinês]. Estão torcendo para fracassarmos e assim assumirem o leme.”
Um elemento tão pequeno como um semicondutor deixou a economia global de pernas para o ar, como demonstra esta lei, provavelmente o programa industrial mais expansivo da história dos EUA e, certamente, desde os anos oitenta, quando a concorrência com o Japão ?um aliado militar dos EUA, diferentemente da China? levou Ronald Reagan a adotar certas iniciativas em pequena escala para potencializar a produção nacional, em seguida abandonadas. Mas a ameaça agora é maior, e o fato de a China poder utilizar a tecnologia à sua disposição para ampliar a vigilância e usá-la eventualmente como arma de uma guerra híbrida é uma possibilidade que não acontecia com relação ao Japão. Por isso na semana passada a Casa Branca ampliou o veto a 59 empresas chinesas suspeitas de vínculos com o conglomerado industrial-militar da defesa.
Como recordava o jornal The New York Times nesta semana, a nova lei recorda o programa Made in China 2025, apresentado há seis anos e destinado a superar a dependência tecnológica do país asiático em relação ao exterior. Com seis anos de atraso, quatro deles sob o mandato de Donald Trump, Washington empreende o mesmo caminho, em uma corrida que pode dissociar as duas maiores economias mundiais do resto, embora esteja em jogo a supremacia global. Enquanto isso, os grupos de pressão que representam os interesses das grandes corporações em Washington esfregam as mãos à espera de possíveis contratos.
El País