Resumo – “República” de Platão – Livro I e II

Livro I

O tema deste livro, República, é evidente desde o seu início: encontrar uma definição da justiça. No livro I, Sócrates voltando de suas preces à deusa Bendis de um novo culto trácio em Atenas, como lhe é típico, se utiliza de seu método investigativo para conduzir discussões, partindo da definição de seus interlocutores que encontra, a princípio aqui da opinião comum apresentadas por Céfalo e seu filho Polemarco.

Céfalo discorre sobre a velhice com Sócrates que já também era bastante velho. Ele fala sobre os limites da idade avançada, isto é, a pacificação das paixões, moderação dos sentimentos, o usar dos bens materiais sensatamente e, principalmente, o termo da morte próxima e o despertar de um reexame da vida. Ademais, Glauco, por ser estrangeiro, acredita, contrariamente à religião tradicional de Atenas, que nossa alma imortal será punida ou recompensada no Hades. Aquele que cometeu mais injustiças é mais atormentado pelo além, enquanto que aquele que só faz o justo, não. Como disse o poeta Píndaro, para quem viveu segundo a justiça, a velhice é como uma bondosa ama, que alimenta de esperança o coração dos velhos. Acabando por dar a primeira definição de justiça da República, dizer a verdade e não enganar ninguém, o que foi visto como restituir o que se tomou dos outros.

No entanto, Sócrates já posiciona um exemplo certeiro em seu contra-argumento, ninguém diz que seria justo restituir a um amigo enlouquecido as armas que tivesse recebido dele enquanto ainda estava em perfeito juízo. Polemarco recorre a outro poeta para defender a mesma tese sobre a justiça, Simonides[1]. Porém, o mesmo exemplo ainda é válido para este argumento, com um pequeno detalhe a mais. Sócrates expande a situação hipotética em, ao não restituir as armas ao amigo enlouquecido, supõe-se que se faça o bem, pois amigos fazem o bem para amigos, sendo o mal feito aos inimigos. Entretanto, se fosse apenas isso, ou seja, dependesse de uma visão particular, por muitas vezes se poderia estar equivocado, fazendo bem ao inimigo e mal ao amigo. Daqui, por enquanto, a única coisa que se pode tirar com certeza é que a justiça faz os homens bons e o homem bom não pratica o mal, nem sequer ao seu inimigo

Fato importante a se colocar aqui é a importância até então dos poetas, que criaram o modo de vida grego. Nas opiniões do “senso comum”, são utilizadas citações de dois poetas, Píndaro e Simonides como uma forma de autoridades incontestáveis. Entretanto, claramente com a introdução da filosofia no modo de vida grego, assim como a do sofisma, vemos um abandono do modelo poético para explicação dos fenômenos naturais ou, ainda, dos costumes. Este novo decair da presente ordem do universo mostra-se claro em As Nuvens, onde Zeus morre.[2]

Então, entra Trasímaco, o sofista, e afirma que a justiça não é mais do que o interesse do mais forte, pois em toda cidade são os fortes que governam e fazem as leis. Aqui Platão mostra o sofista como alguém interesseiro em dinheiro, em aprovação pública, glória e estima, mas que tem sido ouvido pela nata da juventude que se encontra perdida em meio a crise de crenças em Atenas. Sócrates entretanto concorda com Trasímaco de que a justiça seja uma conveniência, porém discorda que seja do mais forte. Até nesta situação o mais forte, ou seja, o governante pode se enganar quanto ao que pensa ser melhor para si e, além do mais, o governante sempre governa para seus subordinados e nunca para si, pois ele é como a medicina e a náutica, existem para os mais fracos. Mas Trasímaco não desiste e, por meio de vários exemplos, conclui que a justiça só é boa para o forte e o poderoso, tornando um prejuízo para quem a obedece e muito útil e vantajosa para quem a desobedece.

Adiante, Sócrates inverte o raciocínio em que: o justo seja bom e sábio e o injusto, ignorante e mau. Advindo daí que aquele que exerce o que cabe à sua alma, sua virtude de manter a vida, viverá bem e aquele que vive bem nada mais é que feliz, sendo o injusto, infeliz. Cabe aqui também a preocupação de Céfalo pelo além e o juízo do mundo inferior. Uma vida justa e feliz, só poderia acalmar a alma para o além e ter a recompensa que só ele acredita receber.

Bibliografia:

PLATÃO, A República (Da Justiça). Edipro. São Paulo. 2006.

MIRANDA, Mário. Crenças: Filosofia e religião na leitura da República. 2011.

STRAUSS, Leo. Jerusalém e Atenas.

Comentários.

            Ambos os livros I e II tratam dessa primeira definição inicial da justiça. Os poetas, mostrando claramente suas raízes no modo de pensar e agir grego, são utilizados como recursos argumentativos pelos interlocutores de Sócrates. No entanto, apenas mostrando um ponto de vista do senso comum em relação à justiça e à injustiça. É claro desde as primeiras palavras como o antigo modo de viver grego está em crise, pelas referências à outra religião entrando em Atenas, oferendas sendo feitas a deuses estrangeiros e à ansiedade, trazida pela proximidade da morte de Glauco, por um julgamento justo no fim de sua vida e um pós-vida pacífico[1]. Mas como se não se sabe por certo sequer o que seja justiça?

Trasímaco, o sofista introduz o niilismo que vai estender-se até o segundo livro. Se o saber ancião está se perdendo, e é fácil já enganar os deuses, numa visão distorcida do que está sobrando dos ritos, alguns simplesmente caem em desesperança. E a injustiça vence os de corações mais vulneráveis, como os jovens interlocutores de Sócrates. Os deuses antigos estão perdendo o seu “poder” e influência sobre os gregos[2], levando-os a crer que a injustiça é mais lucrativa que a justiça. Esta argumentação é forte, pois toma exemplos verdadeiros do cotidiano, porém falta averiguar a questão conceitual, que apenas no livro II é abordada.

Platão põe Sócrates à sua maneira, a questionar a todos e até fingir derrota sobre o tema da justiça, mas a direção da conversa logo toma um rumo certeiro. No primeiro livro, as opiniões se acumulavam, como elementos para uma grande peneira. No segundo, é preciso ir por outro caminho, a justiça deve ser vista como um bem em si e pelos seus efeitos – em vez de ser uma coisa penosa -, mas antes deve se estabelecer a origem da justiça, o que é uma empreitada em que se poupa bastante tempo. Pois, o diálogo caminha para um tema escolhido por Sócrates, apesar de Glauco ainda tomar o papel de Trasímaco sobre a injustiça.

Para se chegar à origem do problema, é preciso saber porque as pessoas são justas também. As leis servem como reguladoras do que é justo e do que não é. Mesmo que todos as sigam a contragosto, impede um número maior de injustiças, o que não deixa de dar ênfase ao injusto que não é pego[3]. Importante aqui ver que, se não houvesse as leis, todos cometeriam injustiças, pois estes mesmos também poderiam sofrê-la, se assemelhando nem que seja um pouco a uma condição natural má do homem.

Todavia, o assunto ainda não está demasiado aprofundado e Platão segue mais à base do problema, na questão: por que existe a cidade? A resposta a esta questão responderia ao problema de Adimanto e de vários poetas citados no texto de que, a justiça é mais válida pela sua fama, sua aparência, pois ser justo de verdade é trabalhoso, enquanto injusto, prazeroso e fácil. Pois, a cidade é comparada com a alma, tendo apenas diferenças de grau. Então, Sócrates apenas tem de responder do porque a justiça ser boa por si, independentemente de ser vista ou não.

Ninguém é auto-suficiente, o homem precisa de outro para efetuar suas tarefas, daí a necessidade da cidade, pois ela corrige isso e torna o grupo auto-suficiente. No entanto, assim como a alma humana, o necessário dá espaço para o supérfluo ou o luxo. Este é buscado em outras cidades ou, no paralelo à alma humana, em outras pessoas, como no roubo. Aqui nasce a guerra.

Então, o guardião entra em questão. Aqui começa a análise das classes da cidade ou, por assim dizer, da própria alma. Entre as qualidades que o guardião deve ter, a saber, força, coragem e temperamento, é preciso educá-lo a fim de o ser também filósofo. Para isto, Platão ataca – e é necessário ser preciso nas palavras aqui – os ensinamentos da poesia. Ou seja, ele sabe que se quiser construir uma nova sociedade, não se pode renunciar a poesia. Platão critica, mas se utiliza da poesia, pois não mira sua forma, mas a sua temática, o modo como os deuses se comportam e como a moral é por vezes ignorada. A filosofia vem para modificar este conteúdo, pois, mesmo Platão se utiliza da forma poética em seus escritos, ele escreve em diálogos! Assim, o foco mira agora  o que se deve ensinar às crianças: a virtude e não os deuses viciosos dos antigos poetas, já que é assim que uma nova sociedade é feita.

Bibliografia:

PLATÃO, A República (Da Justiça). Edipro. São Paulo. 2006.

MIRANDA, Mário. Crenças: Filosofia e religião na leitura da República. 2011.

STRAUSS, Leo. Jerusalém e Atenas.


[1] Crenças estas que não são de Atenas.

[2] A própria filosofia entra como um dos fatores da crise do modo de vida grego.

[3] Como pode ser visto no exemplo de Giges e seu anel, e do poeta Ésquilo no segundo livro.


[1] Já é possível notar como os poetas realmente criaram o modo de vida grego e ainda tem sua força em argumentos de autoridade.

[2] As inúmeras referências e citações aos poetas que aparecem nos três primeiros livros da República ilustram bem como os gregos eram educados por meio da poesia. Esse modelo tradicional de educação, que Platão pretende superar na república. GUINBURG, J., A República de Platão (Org). São Paulo: Perspectiva, 2006: p. 27-8, nota, 15

Trecho do livro ‘A República’, de Platão:

“Sócrates? Agora imagina a maneira como segue o estado da nossa natureza relativamente à instrução e à ignorância. Imagina homens numa morada subterrânea, em forma de caverna, com uma entrada aberta à luz; esses homens estão aí desde a infância, de pernas e pescoços acorrentados, de modo que não podem mexer-se nem ver senão o que está diante deles, pois as correntes os impedem de voltar a cabeça; a luz chega-lhes de uma fogueira acesa numa colina que se ergue por detrás deles; entre o fogo e os prisioneiros passa uma estrada ascendente. Imagina que ao longo dessa estrada está construído um pequeno muro, semelhante às divisórias que os apresentadores de títeres armam diante de si e por cima das quais exibem as suas maravilhas.

Glauco? Estou vendo.

Sócrates ? Imagina agora, ao longo desse pequeno muro, homens que transportam objetos de toda espécie, que os transpõem: estatuetas de homens e animais, de pedra, madeira e toda espécie de matéria; naturalmente, entre esses transportadores, uns falam e outros seguem em silêncio.

Glauco – Um quadro estranho e estranhos prisioneiros.

Sócrates – Assemelham-se a nós. E, para começar, achas que, numa tal condição, eles tenham alguma vez visto, de si mesmos e de seus companheiros, mais do que as sombras projetadas pelo fogo na parede da caverna que lhes fica defronte?

Glauco – Como, se são obrigados a ficar de cabeça imóvel durante toda a vida?

(…)

Sócrates – Considera agora o que lhes acontecerá, naturalmente, se forem libertados das suas cadeias e curados da sua ignorância. Que se liberte um desses prisioneiros, que seja ele obrigado à endireitar-se imediatamente, a voltar o pescoço, a caminhar, a erguer os olhos para a luz: ao fazer todos estes movimentos sofrerá, e o deslumbramento impedi-lo-á de distinguir os objetos de que antes via as sombras. Que achas que responderá se alguém lhe vier dizer que não viu até então senão fantasmas, mas que agora, mais perto da realidade e voltado para objetos mais reais, vê com mais justeza? Se, enfim, mostrando-lhe cada uma das coisas que passam, o obrigar, à força de perguntas, a dizer o que é? Não achas que ficará embaraçado e que as sombras que via outrora lhe parecerão mais verdadeiras do que os objetos que lhe mostram agora?