90 anos de Toni Morrison: “Deus ajude essa criança” é boa opção para se ter o primeiro contato com a autora

Resenha: Deus ajude essa criança, Toni Morrison | Resistência Afroliterária

Toni Morrison, a primeira escritora negra a ganhar o Nobel

Júlia de Aquino
Instagram literário @juentreestantes

“Se eu pareço irritada, ingrata, parte disso é porque no fundo existe remorso”

O segundo livro que li este ano e o primeiro para o Desafio Entre Estantes 2021 – Desafio proposto por mim no meu perfil Ju Entre Estantes. Também foi meu primeiro contato com a Toni Morrison, e não poderia ter sido melhor, principalmente quando ela completaria 90 anos. Sempre ouvi falar muito de sua escrita impactante, principalmente por abordar questões de raça.

Explico abaixo os pontos que mais chamaram atenção durante a leitura e o porquê de tê-lo avaliado tão bem.

Observação: a obra pode conter alguns gatilhos – racismo; maus-tratos; violência doméstica e sexual; pedofilia; fogo.

TRAMA – Lula Ann, a Bride, é uma jovem cuja pele escura sempre foi motivo de desgosto dos pais. Criada sem amor por uma mãe que se recusava a reconhecer sua existência, Bride tenta conseguir afeto contando uma mentira que culmina na prisão de uma mulher inocente. Anos mais tarde, depois de se tornar uma profissional bem-sucedida, Bride procura reparar os danos causados pela sua invenção. Mas talvez seja tarde demais.

Deus ajude essa criança | Amazon.com.brTEMAS ABORDADOS – O mais impressionante na narrativa é que Morrison consegue falar de diversas questões humanas dentro de uma mesma história – não, não é apenas sobre racismo.

Além de obviamente tratar da questão racial, ela aborda ganância, culto à aparência, poder e dinheiro, humildade, amor, e nos convida à seguinte reflexão ao longo de toda a obra: “E então, o que de fato importa?”. É importante ressaltar que, diferente de muitos livros que lemos, essa pergunta-mensagem se faz presente desde metade do livro mais ou menos, sem aquela “lição final” características de histórias de ficção.

FERIDAS DA INFÂNCIA – Embora o racismo seja o centro e a origem de tudo, é possível pensar e repensar sobre a questão da “infância” durante a leitura. Todas as ações e reações dos personagens têm como “ponto de partida” a infância de Bride.

Feridas da infância deixam marcas muitas vezes difíceis de cicatrizar – principalmente quando são criadas por figuras referências, como os pais e familiares. Invariavelmente, é necessária toda uma vida para repará-los. A trajetória de Bride, nesse sentido, nos inspira e nos mostra que, sim, é possível superar, apesar de certas percepções, memórias e “manias” (no geral, de autopreservação) nunca nos deixarem.

NARRATIVA – A cada capítulo, vemos a versão de um personagem. Até mesmo esse formato nos surpreende, pois acaba revelando pontos de vista de pessoas que no início nem consideramos importantes para a história.

Apesar de ser um livro curto, com capítulos curtos – um de seus pontos positivos –, Morrison consegue nos prender do início ao fim com essas diferentes perspectivas. As impressões dos personagens e as situações em que se envolvem agregam à história principal e levam a mente do leitor em diferentes direções.

PANORAMA GERAL – Dói acompanhar as lembranças e traumas da Bride. Mas elas nos fazem pensar muito. E por isso considero um livro maravilhoso!

Quem já desbravou as obras de Morrison mais a fundo, certamente terá impressões diferentes ou títulos “melhores” para comentar. Mas, como primeiro contato com a autora – por enquanto –, foi uma ótima escolha, que me deixou com vontade de ler seus outros. Recomendo a todos, sobretudo aos que queiram conhecer sua escrita.

90 ANOS – Por coincidência, nesse ano comemoramos os 90 anos de Toni Morrison! Ela, primeira escritora negra a vencer um Prêmio Nobel de Literatura; ela, criadora de diversos personagens fortes e inesquecíveis.

A marca registrada da autora é sua narrativa poética e crua, trazendo à luz questões históricas prementes, como a herança do sistema escravocrata nos Estados Unidos. Apesar da complexidade do tema, ela o apresenta através de personagens “reais”, tão humanos como você e eu.

Para quem se interessar em se aprofundar em seus traços narrativos ou quiser saber mais sobre suas obras, recomendo a seguinte publicação, da Revista “Pensar a Educação” (é um texto curto, mas objetivo e completo): https://tinyurl.com/2ejpx6jz

Livro: Deus ajude essa criança
Autora: Toni Morrison
Editora: Companhia das Letras
Páginas: 168

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TRECHOS MARCANTES

  • “Não levou mais de uma hora depois que tiraram a criança do meio das minhas pernas pra perceberem que tinha alguma coisa errada. Muito errada. Ela era tão preta que me assustou”.
  • “Uma voz macia. Que sabe que, depois de quinze anos atrás das grades, nada é de graça. Ninguém dá nada sem preço pra quem recebe”.
  • “Alguns de vocês podem achar que é ruim a gente se agrupar de acordo com a cor de pele. Mas de que outro jeito a gente pode ter um mínimo de dignidade?”
  • “Eu não fui uma mãe ruim, você precisa saber disso, mas posso ter feito alguma coisa dolorosa para minha única filha porque tinha que proteger a menina. Tinha. Tudo por causa de privilégios da cor de pele”.
  • “Eu fui bonita um dia, ela pensou, bonita mesmo, e acreditei que isso bastava.”
  • “Quando impera o medo, obedecer é a única opção de sobrevivência. E eu era boa nisso”.

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