Os cem anos de Helio Fernandes, comemorados de novo por seu neto Felipe

Helio Fernandes, o neto Felipe e sua máquina de escrever

 

Felipe Fernandes

Meu avô completa 100 anos de idade. Para o resto do mundo ele pode ser o Helio Fernandes intempestivo, implacável e combativo, capaz de suscitar fãs ardorosos e inimigos numa mesma medida. Pra mim, no entanto, ele sempre foi o vovô lélio, o avô mais carinhoso e atencioso que uma criança poderia sonhar em ter.

O avô que cativava (e ainda cativa) com histórias incríveis de uma vida não menos incrível, que fala com a mesma desenvoltura sobre as conquistas de Alexandre, O Grande, a Guerra de Secessão e a última rodada do campeonato brasileiro.

AUSTERIDADE – O avô que me ensinou, dentre tantas e tantas coisas, o valor da austeridade, com seus hábitos quase monásticos – como só tomar banho frio, coisa que sempre defendeu como infalível pra boa saúde (não se pode dizer que ele está errado…).

Certa vez percebi que ele tinha parado de comer ovos quentes no café da manhã, coisa que fazia praticamente todo dia. Quando perguntei o motivo, simplesmente disse que parou porque gostava demais.

O homem das lendárias corridas diárias em volta da Lagoa – fizesse chuva ou sol -, hábito que manteve até quando seus joelhos permitiram, mais ou menos por volta dos 90.

“O CAPITAL” – Que me deu O Capital no meu aniversário de 10 anos de idade, comentando por alto que tinha lido ele mesmo quando tinha 10 anos de idade, mostrando que a voz que traz ternura também pode desafiar e cobrar com sutileza – juro que tentei encarar, mas não consegui ir muito adiante.

Todos esses e tantos outros pequenos exemplos foram moldando meu imaginário pessoal sobre aquela figura ao mesmo tempo tão presente quanto inacessível. Me mostraram a importância da disciplina, da erudição e, o mais importante: de exercer isso com prazer.

NA CASA E NO MARACANà– A casa dos meus avós foi meu primeiro contato com o Rio de Janeiro, e foi também – junto com o Maracanã – meu universo carioca durante muito tempo. O calor abafado e a umidade onipresente do Jardim Botânico não poderiam ser mais contrastantes com a aridez da minha Brasília natal. Ainda hoje, aqueles dias sufocantes que precedem as chuvas de verão me remetem diretamente à infância e minhas primeiras memórias do Rio.

Me dava imenso prazer ficar no ateliê da minha avó enquanto a observava pintar seus pratos de porcelana com toda a delicadeza e paciência, ou então desbravar a biblioteca do meu avô, onde eu podia folhear coisas tão diversas como um romance de Aldous Huxley, poemas de Olavo Bilac ou a História do Tribunal de Justiça de Pernambuco.

Não importava qual fosse o livro que eu retirasse da estante, meu avô tinha uma ou mais histórias pra contar sobre aquilo, e lá ficávamos nós mais horas a conversar – e, quem o conhece, sabe que podem virar horas mesmo.

PASSADO E PRESENTE – Falo desses acontecimentos no passado porque cito minhas lembranças de infância, mas essas coisas continuam acontecendo – não mais as pinturas da minha avó, que partiu há 6 anos, apesar de estar presente em nós e em cada canto e detalhe daquela casa. Mas tenho a imensa sorte de poder continuar indo visitar meu avô, vasculhar a mesma infinita biblioteca e escutar ainda mais histórias maravilhosas do seu acervo mental inesgotável.

É impossível falar do meu avô sem citar novamente minha avó, Rosinha. Uma relação bonita de décadas de companheirismo que foi sintetizada naquela que é provavelmente a dedicatória mais bonita que já vi (e sem dúvidas minha preferida), que abre o livro de memórias dele sobre seu período confinado em Fernando de Noronha pelo regime militar:

“Este livro é dedicado à minha mulher, Rosinha Fernandes. Se alguma vez no mundo um homem já deveu a uma mulher carinho, ternura, amor, reconhecimento e dedicação, esse homem se chama Helio Fernandes”

FOTO DA TIA – Essa foto tirada não muito tempo atrás por minha tia (e grande fotógrafa) Ana Carolina Fernandes capta muita coisa do que descrevi aqui em cima – o carinho, a troca, a curiosidade, além da máquina de escrever que foi a trilha sonora de tantos momentos e que faz só poucos anos foi trocada por um computador.

O menino cresceu e já não cabe mais no colo do avô. Mas até hoje volta a ser pequenininho quando senta aos pés dele pra viajar nas suas histórias.